Um grupo de profissionais da saúde lançou esta semana a campanha “Leitos para Todos”. A iniciativa aponta a urgência em promover medidas de universalização da saúde durante a pandemia do coronavírus para garantir o tratamento adequado à população.
De acordo com a assistente social e sanitarista Amanda Frazão, uma das idealizadoras da campanha, o Sistema Único de Saúde (SUS) pode ser levado ao colapso em poucas semanas pois não há a capacidade para absorver os casos graves da covid-19 previstos para o Brasil. Ela explica que a campanha busca sensibilizar a sociedade para a gravidade da situação e propor medidas, como o gerenciamento de leitos privados pelo poder público, para garantir que o maior número de doentes tenha acesso ao atendimento médico.
“Nossa proposta é que os leitos sejam gerenciados pelo poder público, independente se está no SUS ou na rede privada, e que sejam acessados por meio de fila única a partir de critérios de gravidade do caso. Essa já é uma forma utilizada aqui no país, por exemplo, quando se faz transplante de órgãos”, explica Frazão.
A campanha começou primeiro no estado do Rio de Janeiro e já está nas redes sociais. A iniciativa também destaca a urgência para que os Equipamentos de Proteção Individual (EPIs) estejam disponíveis para todos os profissionais de saúde que atuam no combate ao coronavírus.
Dados do Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (CNES) apontam que o estado fluminense possui atualmente 3.786 leitos de Unidade de Terapia Intensiva (UTI), sendo que 2.611 estão na rede privada. Segundo Frazão, essa distribuição privilegia o atendimento de pacientes com coronavírus que possuem plano de saúde.
“Se a gente vive numa sociedade que é desigual socialmente, isso vai se concretizar também no número de óbitos, ou seja, vai morrer muito mais pobre do que gente mais favorecida e privilegiada financeiramente. A tentativa da campanha “Leitos para Todos”, para além de tentar controlar a pandemia e diminuir o número de óbitos que estamos prevendo, é enfrentar essa desigualdade social que já vivenciamos”, afirma. (Texto: Brasil de Fato / Foto: Marcelo Casal Jr -Agência Brasil)
A íntegra do manifesto
LEITOS PARA TODOS!
Em poucas semanas a pandemia da COVID-19 pode levar o sistema de saúde brasileiro ao colapso, isto é, ao ponto a partir do qual não será possível atender a demanda de casos graves de internação e terapia intensiva. Infelizmente, esse cenário se torna cada vez mais provável na medida em que: a curva de crescimento da epidemia segue em ritmo similar à da Itália; há uma enorme dificuldade da implantação das medidas de isolamento em áreas periféricas com condições precárias de moradia, saneamento, renda e trabalho; a mais alta autoridade do país desdenha dos impactos do vírus e da necessidade de medidas de contenção.
O Sistema Único de Saúde (SUS), público, gratuito e universal, é o principal instrumento para enfrentar essa situação. Alguns estados como Rio e São Paulo tem mobilizado esforços crescentes para a ampliar a oferta de leitos, através da adaptação de espaços assistenciais públicos existentes e da criação de hospitais de campanha. Isso ainda é muito pouco frente aos enormes desafios que se colocam no curto prazo. Os primeiros estudos que estimaram a demanda indicam que em 53% das regiões de saúde será necessário dobrar a capacidade instalada de leitos de Unidades de Terapia Intensiva (UTI), e que para isso seriam necessários 18,6 bilhões de reais.
Para além da insuficiência de leitos, corremos o risco de que o atendimento aos pacientes portadores do coronavírus reproduza uma incômoda marca do sistema de saúde brasileiro: a desigualdade. Em 2019, o Brasil contava com cerca de 15,6 leitos de UTI para cada 100.000 habitantes. Todavia, para cada leito per capita disponível para o SUS, existem aproximadamente 4 disponíveis para os planos de saúde. O sistema público utiliza cerca 45% do total de leitos de UTI, enquanto mais da metade se destina a 25% da população cliente de planos de saúde. Quando se considera as disparidades regionais, a situação pode ser ainda pior.
Para enfrentar esta dramática situação, o poder público precisa tomar atitudes muito mais enfáticas e coordenadas para garantir atenção a todos os casos independente da capacidade de pagamento das pessoas. Além disso, o momento exige que o setor privado, incluindo planos de saúde e hospitais privados, colaborem de forma muito mais decisiva do que vem fazendo, dada a quantidade de recursos assistenciais que mobilizam: leitos, profissionais, respiradores, equipamentos, máscaras. As secretarias estaduais e municipais sozinhas não podem responder a este enorme desafio. Tampouco será possível sem que o governo federal assuma sua responsabilidade, para muito além do Ministério da Saúde.
Existem bases legais para que seja feito muito mais. A Lei n° 13.979/2020 afirma que “para o enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar (...) as seguintes medidas: (...) requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa”. A Lei 8.080/1990, afirma que “a saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício”, que “o dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação”. E, finalmente, que esse dever “não exclui o das pessoas, da família, das empresas e da sociedade”.
Diante da necessidade de estabelecermos mecanismos práticos que viabilizem o acesso universal e igualitário aos serviços de saúde como prevê a Constituição de 1988, sem distinção por capacidade de pagamento; e da necessidade urgente de construção de uma resposta adequada e solidária à epidemia, que salve a maior quantidade de vidas possível, propomos:
A utilização, controle e gerenciamento pelo poder público de toda a capacidade hospitalar existente no país de forma emergencial, especialmente leitos de internação e UTI de hospitais privados e planos de saúde, para o tratamento universal e igualitário dos casos graves da COVID-19. Isso deve acontecer de forma articulada ao setor privado, que por sua vez deve cooperar com recursos técnicos e assistenciais para o enfrentamento coletivo da pandemia.
A criação de uma fila única de casos graves da COVID-19 que demandem internação e terapia intensiva, a ser regulada pelo SUS aos moldes da experiência das filas de transplantes, constituída única e exclusivamente a partir de critérios clínicos e não por sua capacidade de pagamento.
Que o Ministério de Saúde e secretarias estaduais apresentem imediatamente projeções de demanda de leitos de internação, de UTI e respiradores para todas as unidades da federação e regiões de saúde, assim como estimativas de recursos financeiros e assistenciais necessários para que todos os casos sejam atendidos.
Que o governo federal, em articulação e cooperação com os estados e o setor privado, disponibilize imediatamente os recursos financeiros e assistenciais necessários para a construção de leitos de internação e UTI com respiradores para todos que precisam. Isso pode ser feito utilizando a capacidade privada, adaptando serviços já existentes para que se tornem leitos de internação e UTI, e construindo quando necessário hospitais de campanha.
O monitoramento, gestão e distribuição unificada dos estoques de equipamentos de proteção individual (EPIs) que garantam isolamento respiratório e segurança para todos os profissionais de saúde na rede pública e na rede privada. O mesmo vale para os testes da COVID-19, que precisam ser disponibilizados e distribuídos em uma escala muito superior ao que vem acontecendo.