Revista norte-americana destaca trabalho de comitê na luta contra a violência no Ceará

25/07/18 09:09

  • A edição desta semana da revista Americas Quartely traz um longo dossiê sobre a explosão de violência na América Latina nos últimos anos. Uma das matérias que compõem o dossiê é uma reportagem escrita pelo jornalista Richard Lapper, que faz um perfil de Renato Roseno e destaca seu trabalho à frente do Comitê Cearense pela Prevenção de Homicídios na Adolescência. Confira, abaixo, a íntegra da matéria. A tradução é do jornalista Felipe Araújo. A versão original pode ser acessada aqui (https://bit.ly/2LHvCup).

Quando Renato Roseno visitou pela primeira vez o Pirambu, uma das maiores favelas do Brasil, o local era formado basicamente por barracos de madeira e estradas de terra.

“A vida era bem precária no começo dos anos 90", ele lembrou. “As pessoas lutavam por acesso à eletricidade e aos serviços básicos de saúde. O grande desafio eram as altas taxas de mortalidade infantil”.

Hoje, conjuntos de casas de dois andares pintadas de em tons pastel de azul, rosa e verde marcam a paisagem do Pirambu e de outras áreas de Fortaleza, uma cidade de 2,6 milhões de habitantes no Nordeste do Brasil. Quase todas as ruas são pavimentadas. Motocicletas, símbolo de status para a maior parte das classes médias baixas nos países emergentes, trafegam constantemente. E o mais importante, as crianças não morrem mais em tão terríveis quantidades – ao longo dos últimos 25 anos, a taxa de mortalidade no Brasil despencou em dois terços.

Isso, porém, acabou por criar um novo dilema, presente na maior parte da América Latina: à medida que a prosperidade aumentou, também aumentou a violência.

As taxas de homicídios no Ceará, que incluem o Pirambu, quadruplicaram desde o fim dos anos 90, chegando a mais de 50 por 100.000 pessoas. Mais de dois adolescentes morrem todos os dias no Estado, resultando numa estatística de 4500 apenas nos últimos cinco anos. Ainda que o Nordeste tenha se aproveitado do forte crescimento econômico do Brasil, a região, outrora calma, reúne agora oito dos dez estados mais violentos do país.

Para Roseno e muitos outros políticos de esquerda, isso foi um choque. “Nós descobrimos que o crime está relacionado a mais coisas do que apenas a pobreza”, ele disse.

O parlamentar de 46 anos passa seu dia tentando entender e solucionar o problema liderando um comitê legislativo de enfrentamento dos homicídios de adolescentes. Ele acredita que a solução inclui melhor policiamento comunitário, educação e programas que ofereçam aos adolescentes uma alternativa ao crime. Mas é uma dura batalha. Enquanto a violência aumenta, a maior parte dos eleitores de hoje diz que prefere uma abordagem linha-dura ao problema, preferindo tropas de choque em vez de conselheiros ou professores.

Em março, 50 por cento dos brasileiros afirmaram ao instituto de pesquisas Ibope que concordam com a frase “bandido bom é bandido morto”. Muitos eleitores associam de modo negativo penas mais leves ao período de 13 anos do governo de esquerda que terminou em severa recessão e escândalo em 2016. Políticos se aproveitaram dessa reação; o líder nas pesquisas para as eleições presidenciais de outubro é o capitão reformado do Exército Jair Bolsonaro, que disse que vai dar à polícia “carta branca” para matar suspeitos de serem criminosos.

Na verdade, criminologistas contemporâneos têm uma boa ideia do que é necessário para reduzir homicídios e outras violências: uma combinação de prevenção, inteligência policial e promoção social.

A história de Roseno ilustra como boas pessoas estão tentando levar adiante tais medidas – mas enfrentando obstáculos, incluindo limitados recursos humanos, cortes orçamentários e riscos à seu bem estar. “A sociedade vem demandando força”, ele disse. “Nossa abordagem é sobre prevenção. Ela tem de ser baseada em inteligência, em melhorias urbanas e num projeto para o futuro”.

Nascido numa família de classe média de Fortaleza – seus pais eram donos de uma farmácia -, Roseno é militante político da esquerda brasileira desde os 15 anos. Inicialmente, filiou-se ao Partido dos Trabalhadores de Luiz Inácio Lula da Silva, que administrou o boom das commodities dos anos 2000, tirando 35 milhões de brasileiros da pobreza, a maioria deles no Nordeste. Em 2005, frustrado com o que via como alianças políticas inaceitáveis, Roseno trocou o PT por um partido ainda mais à esquerda: o Partido Socialismo e Liberdade (PSOL).

Uma companheira sua de partido, a vereadora carioca Marielle Franco, foi assassinada em março, num crime ainda sem solução e que ganhou repercussão internacional. A principal suspeita é que ela foi morta por conta da defesa que fazia das vítimas da violência policial. Em 2017, Renato foi obrigado a andar com guarda-costas depois de receber ameaças por conta de um vídeo no YouTube, de autoria desconhecida, que alegava que ele tinha relações com líderes de facções criminosas. Um ano depois, ele afirma que “ainda tomo cuidado” e que “nunca vou a lugares sozinho”.

Apesar dos riscos, Roseno é cheio de energia e está constantemente em movimento – durante um período de 24 horas em abril ele conversou com médicos e enfermeiros, encontrou-se com prefeitos de vários locais do Estado e deu uma palestra noturna para alunos de uma faculdade de psicologia. Ele parece estar sempre em campanha, eventualmente tomando um café, mas raramente parando para comer. Ele só vê sua namorada, uma jornalista que estuda em Brasília, nos finais de semana.

Em meados dos anos 90, a violência relacionada às drogas no Brasil estava concentrada em São Paulo e no Rio de Janeiro. Mais recentemente, os homicídios naquelas cidades caíram. Mas facções com raízes ali, chamadas Primeiro Comando da Capital (PCC) e Comando Vermelho (CV), se espalharam por outras partes do Brasil. A presença do Comando Vermelho no Pirambu é constatada por grafites onipresentes de suas iniciais nas equinas.

Em 2018, a epidemia continuou a aumentar, com assassinatos no Ceará crescendo 22% no primeiro quadrimestre em relação ao mesmo período no ano anterior. Como é comum na América Latina, a maior parte da violência ocorre em uma área relativamente concentrada: 17 dos 119 bairros de Fortaleza registraram 44 % das mortes de adolescentes que Renato pesquisa.

“O problema é que os garotos não vêem nenhum futuro”, ele disse. “Para o resto da sociedade, esses garotos são vagabundos. Você tem de dar oportunidade a eles”.

Na falta dessas oportunidades, uma cultura de ultra-violência ocupou lugar. Membros de gangues rivais são recorrentemente torturados e decapitados. A violência é comemorada em letras de funk e as provas sangrentas são filmadas, circulando amplamente nas mídias sociais. O whatsapp, o aplicativo para celulares conectado à internet que é criptografado e portanto difícil de ser rastreado pela polícia, é o preferido das gangues.

Roseno me mostrou imagens de um cadáver mutilado, colocado num carrinho de mão e abandonado do lado de fora de um supermercado. “Esse garoto confundiu as palavras em seus ritos de iniciação em uma facção e foi barbaramente torturado e morto”, ele disse. “É uma loucura”.

Está claro hoje que o crescimento econômico dos anos 2000 e início dos anos 2010 resolveu velhos impasses – mas trouxe consigo novos problemas. Migrações para as cidades de pessoas oriundas das áreas rurais mais pobres e carentes , fragmentação das famílias e das estruturas sociais. Os serviços públicos, como os cuidados de saúde e educação, não acompanharam essa dinâmica. Roseno também vê a falta de um elemento ligado à cidadania.

“Nós presenciamos aumento da renda mas isso não veio acompanhado de um incremento em termos de cidadania, acesso à esfera pública e bons serviços”, ele disse. “O consumismo excessivo aumentou os conflitos”.

Cerca de 60% dos jovens vítimas de assassinato deixaram a escola, de acordo com Roseno, o que fez com que o comitê cobrasse dos políticos e das autoridades responsáveis a presença em sala de aula como uma questão de alta prioridade. A pressão resultou na criação, em abril, de um programa por parte do governo do Estado que monitora a presença escolar – um processo incomum no Brasil – e premia as prefeituras que alcançassem os melhores resultados.

Roseno também trabalha com um amplo grupo de ativistas comunitários. Um deles é Evandro Rocha, de 44 anos, que cumpriu pena por assassinato e agora trabalha como mediador, incentivando os garotos do Pirambu a não seguir seus passos. “Quando os membros das facções fazem ameaças entre si, eu digo que eles não vão fazer nada por aqui”, disse Rocha. “Eles não discutem porque eu os conheço desde que eles eram pequenos”.

Em outra área de Fortaleza, chamada Bom Jardim, grupos teatrais e musicais realizam workshops num centro comunitário recentemente construído, outro esforço do governo em criar alternativas para as facções. No Conjunto Palmeiras, Paulinho, ex-jogador profissional de futebol, juntou-se à Visão Mundial, uma instituição de caridade evangélica, para desenvolver uma escolinha onde as crianças aprendem cidadania junto com as técnicas de ataque e dribles.

Os esforços de Roseno recebem algum apoio do governo do Estado. O partido majoritário, o moderado PDT (cujo líder Ciro Gomes vai se apresentando como o principal candidato de esquerda para as eleições presidenciais de outubro), os apoia. Animadoramente, o Ceará tem uma história pouco usual de reformas sociais bem sucedidas. Nos anos 90, o esforço de estado e municípios para reduzir o analfabetismo e incrementar o acesso aos serviços básicos de saúde foi tema do prestigiado livro “Bom governo nos trópicos”, da socióloga Judith Tendler.

Entretanto, em meio à duradoura crise econômica brasileira, a prefeitura de Fortaleza decidiu financiar apenas um sexto dos modestos R$ 60 milhões que o comitê requeriu em 2017 para um programa de prevenção com quatro anos de duração. Nada desse dinheiro foi pago ainda, contou Renato.

A geografia do Ceará é um fator importante. Ceará e os estados vizinhos estão situados ao longo da rota que liga a produção de cocaína dos Andes às rotas marítimas do Atlântico e ao mercado europeu, que segue em expansão, fazendo deles entrepostos ideias para o comércio exportador. Roseno disse que a frágil região é mais carente e ainda mais vulnerável à corrupção do que o Sul do Brasil, mais rico. Além disso, litorais longos e fracamente povoados também são absurdamente difíceis de policiar.

Esse contexto social e geográfico é semelhante a outros locais, particularmente às áreas de fronteira sem lei no México e na América Central. A alternância de alianças entre as facções tornou as coisas ainda mais complicadas. Além do PCC e do CV, dois outros grupos – uma facção local chamada Guardiões do Estado e a Família do Norte, baseada na Amazônia – também estão presentes em Fortaleza, por exemplo. O fim da trégua entre essas facções iniciou uma luta por territórios em 2016 e as taxas de morte aumentaram.

Enquanto isso, as facções estão ampliando seus tentáculos para atividades criminosas mais convencionais e corrompendo instituições estatais. Esses grupos ganham muito dinheiro com a venda de armas. Luiz Fábio Silva Paiva, sociólogo na Universidade Federal do Ceará, afirmou que a disponibilidade de armamento pesado como fuzis tem se tornado mais evidente desde 2015.

Eles também se deslocaram para o ramo de assalto a bancos. No último ano, as facções no Ceará bombardearam agências bancárias e carros-fortes em 70 ocasiões. Desde 2015, as gangues foram ganhando aos poucos o controle das prisões do Ceará. “As facções usam as prisões como um espaço de recrutamento”, disse Silva Paiva.

Nas comunidades pobres, o dinheiro, as armas e as roupas das facções lhes dão muita influência, embora seja nas prisões e nos centros socioeducativos para a juventude que as ligações se tornam mais fortes.

“O excluídos tendem a seguir as facções do mesmo modo que os torcedores de futebol seguem seu time. Como prisioneiro, ou você se junta ao jogo ou se torna bucha de canhão”.

Com as eleições se aproximando, Roseno sabe que é o momento para a construção de apoio popular para mudanças gradativas e para o processo de pacificação – e que isso será um desafio. “A polarização é perigosa. Nosso temor é que haja uma reação”, ele admitiu. Mas ele prometeu continuar trabalhando da mesma forma, incansável e destemida. “A gente tem de ter muita esperança”. (Foto: Galba Nogueira)

Áreas de atuação: Direitos Humanos, Juventude, Infância, Segurança pública