Há pouco mais de um ano, a Justiça no Ceará obrigou o Governo do Estado a oferecer e patrocinar atendimento psicológico e psiquiátrico, incluindo o fornecimento gratuito de remédios receitados, às vítimas sobreviventes e familiares dos mortos pela chamada “Chacina do Curió”. Neste triste episódio, 11 pessoas, em sua maioria jovens, foram assassinadas e sete ficaram feridas por policiais militares na madrugada de 12 de novembro de 2015.
Atendendo a uma ação civil pública, assinada por 17 defensores públicos do Ceará, a Justiça foi convencida de que este serviço não é oferecido pelo governo cearense. Mesmo com a decisão judicial, proferida no dia 2 de fevereiro de 2021, nenhum apoio foi dado até o momento.
O apoio psicológico e psiquiátrico, uma das medidas não monetárias que busca a reparação de danos causados, tem sido uma forte luta do grupo de famílias afetadas pela criminosa ação da polícia, há seis anos, sobretudo o movimento Mães Vítimas Por Violência Policial do Estado do Ceará, que dialoga com a Comissão de Direitos Humanos e Cidadania (CDCH), da Assembleia Legislativa, presidida pelo deputado estadual Renato Roseno (PSOL).
Em uma das tentativas de buscar que a decisão judicial seja cumprida, a CDCH convocou uma reunião, nesta quinta-feira (17), entre as líderes deste movimento, a Defensoria Pública, o Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (Cedeca), a Coordenadoria de Políticas de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas (COPOM) da Secretaria de Saúde do Estado (Sesa) e entidades da sociedade civil.
“Para mim, é uma agressão o que Estado está fazendo. Depois que nos arranca nossos filhos, oferece hospital mental, onde a gente vai ser humilhada de novo. Sentir a dor de novo? Entrar no hospital mental porque alguém matou nossos filhos?”, provocou a líder do grupo, Edna Carla Souza Cavalcante, que questiona o direcionamento do Hospital de Saúde Mental de Messejana para o acompanhamento das vítimas feridas e familiares dos mortos na “Chacina do Curió”.
Mãe de Alef Souza Cavalcante, que na época do crime tinha apenas 17 anos, Edna Carla aponta a precariedade dos equipamentos públicos para atender um caso tão delicado. “Às vezes, a gente vai para o CAPS e sequer tem médico”, justifica. Ainda, acrescenta: “A gente não está pedindo esmola ao Estado, não. Eu não quero ajuda, quero responsabilização. Já que matou nossos filhos, o governo do Estado abriu espaço para cobrar o direito que é nosso, de ter um tratamento digno para as mães”.
A dor de Edna é semelhante de Maria de Jesus da Silva, mãe de Renayson da Silva, jovem de 17 anos, também assassinado naquela madrugada de 12 de novembro de 2015. “Já são quase sete anos e não conseguimos nada. Nem tratamento e nem outras coisas. Quanto tempo isso? Quantas mães vão sofrer? Quantas mães vão lamentar sob o sangue dos filhos derramados?”, provoca.
“Não adianta dizer que fiquei uma pessoa normal depois do que houve com meu filho. Eu compro remédios para mim. Quero que o Estado olhe com olhar de ser humano. Não estamos pedindo favor, mas exigindo nossos direitos. Eu já estou cansada de promessas e não resolver nada”, desabafou Maria.
Esposa de José Gilvan Pinto Barbosa, de 41 anos, também morto durante a chacina, Ana Lucia Costa Santos lembra que sua filha de 16 anos, na época com nove anos de idade, sofre sem a presença do pai. “Nossa fala sempre será de revolta. É doloroso. Precisamos da ajuda de profissionais para cuidar. Algumas (mães) só para falar não suportam. A gente tira força de onde a gente não tem”, descreve.
A representante da Defensoria Pública do Estado do Ceará, Gina Kerly Pontes Moura, reiterou a responsabilidade de caráter civil do Estado. “Se não possa (a assistência psicológica e psiquiátrica) ser oferecida por entidades públicas, que seja em unidades privadas. A gente tem que ter um serviço adequado ao que foi pedido e continuado”.
O deputado Renato Roseno, presidente da CDHC, lembra que o direito de reparação é direito da vítima, seja econômico, social e de acesso às políticas públicas. “A velocidade é muito aquém da necessidade. Estamos aqui para pressionar, cobrar, recordar essa revolta. Essa dor tem que nos atravessar. Não é possível sem a responsabilidade criminal e os arranjos institucionais que essas vítimas serão atendidas”.
Representante da Coordenadoria de Políticas de Saúde Mental, Álcool e outras Drogas (COPOM) da Sesa, Davi Queiroz, se comprometeu a ter uma reunião, na próxima quinta-feira (24), às 14h30, na Assembleia Legislativa, com os familiares das vítimas, a Defensoria Pública, a CDHC e entidades da sociedade civil que acompanham a situação.
Entenda o caso
Na madrugada do dia 12 de novembro de 2015, numa ação de “justiçamento” pela morte de um colega em uma tentativa de assalto, policiais militares assassinaram 11 pessoas e feriram outras sete, nos bairros Curió, Alagadiço Novo, São Miguel e Messejana, segundo investigação Controladoria Geral de Disciplina dos Órgãos de Segurança Pública e do Ministério Público do Ceará (MPCE). Nenhuma das vítimas tinha qualquer envolvimento com a morte do agente.
O MPCE denunciou 44 agentes envolvidos. Destes, 34 foram pronunciados para ir a júri popular. Os outros 10 irão a julgamento comum. Trinta e três policiais recorrem ao Tribunal de Justiça do Ceará (TJCE) contra a pronúncia da 1ª Vara do Júri. Várias apelações ainda não foram julgadas nas câmaras criminais do TJCE.