É admissível no Brasil o fato de que municípios com monoculturas para exportação no Ceará tenham 38% mais mortalidade por câncer do que municípios que desenvolvem agricultura familiar? Ou mesmo que gestantes que residem próximo aos locais onde se utiliza herbicidas à base de glifosato tenham mais risco de suas crianças nascerem com desordens do espectro do autismo? Ou ainda que lactantes de Lucas do Rio Verde, no Mato Grosso, estejam com seu leite contaminado por agrotóxicos?
A Ação Direta de Inconstitucionalidade 5553, em debate desde 2016 e que foi à plenário em 13 de junho deste ano, questiona a constitucionalidade de cláusulas do Convênio CONFAZ 100/97, que reduz em 60% a base de cálculo da alíquota e permite aos Estados conceder isenção sobre agrotóxicos, assim como contesta Decretos Presidenciais que tratam da isenção de IPI sobre seus ingredientes ativos.
Há 41 anos a referida isenção de IPI permanece inalterada (Decreto nº 89.241/1983), enquanto os benefícios fiscais relacionados ao ICMS mantêm-se há 27 anos.
Após o advento do Plano Nacional de Desenvolvimento Agrícola, que inaugurou a implementação do pacote de incentivos aos agroquímicos no Brasil, o que se observa é a produção de uma extensa quantidade irrefutável de pesquisas acerca da conexão desses produtos com a degradação do meio ambiente e, consequentemente, da saúde humana. Trata-se de pesquisas e estudos que não existiam há meio século e não podem ser ignorados pelo Poder Executivo, que insiste em manter política fiscal que viola bens preciosos tutelados pela nossa constituição: a saúde humana e o meio ambiente. Assim, confrontamos aqui os benefícios concedidos aos agrotóxicos frente ao direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, ao direito fundamental à saúde e ao Princípio da seletividade.
O Direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado nos convoca à responsabilidade com o meio necessário para que a vida humana seja viável neste planeta. Se esta já era uma preocupação do legislador constituinte, agora se faz ainda mais urgente sua defesa, já que estamos vivendo uma crise ambiental planetária ocasionada pela interferência do homem. É cediço que o uso intenso desses produtos leva à contaminação do solo, do ar e dos recursos hídricos, e quando se trata de meio ambiente não há delimitações geográficas para a poluição. Em pesquisa realizada em 2010, pela Companhia de Gestão dos Recursos Hídricos, no Aquífero Jandaíra, localizado no meu estado natal, Ceará, e da água distribuída pelo serviço municipal para o consumo das famílias, revelou a presença de 3 a 12 ingredientes ativos em todas as 23 amostras coletadas, sendo aquela uma região que aporta perímetro irrigado para produção de frutas para exportação. Em Mato Grosso, pesquisa realizada na mesma época, apresentou contaminação em 83% das suas amostras.
Assim, de forma estarrecedora, mas não surpreendente, é que dados recentes do Sistema de Informação de Vigilância da Qualidade da Água para Consumo Humano atestaram em 2023 a contaminação das águas em municípios desses dois Estados. Portanto, aqui não se trata somente da aplicação do princípio da precaução, pois há danos e riscos que realmente ainda não somos capazes de mensurar, mas também deve-se aplicar o princípio da prevenção, tendo em vista que há material que nos embasa para afirmarmos que esses produtos, devido a sua alta toxicidade, afeta todas as formas de vida, inclusive a humana, devendo o incentivo buscado apontar para uma transição agroecológica.
Alguns agrotóxicos permanecem anos no meio ambiente, como é o caso do DDT, utilizado no Brasil até meados dos anos 90 e que leva cerca de 30 anos para desaparecer completamente da natureza, o que nos alerta para o princípio da responsabilidade intergeracional e para pensarmos que mundo deixaremos para aquelas e aqueles que nos sucederão.
O Direito fundamental à saúde, albergado pelo art. 196 da Constituição, não se refere unicamente ao tratamento de doenças, mas igualmente à prevenção destas. Contudo, quando olhamos para as doenças relacionadas aos produtos agrotóxicos constata-se sua relação com as que: afetam o sistema nervoso - com alterações que vão desde as neurocomportamentais até casos de suicídios; afetam o sistema respiratório, com doenças que se estendem da asma à fibrose pulmonar; afetam o fígado – com ênfase nos casos de hepatopatias tóxicas crônicas; e podem causar alterações na reprodução humana - como infertilidade masculina, abortamento, malformações congênitas, parto prematuro e baixo peso de recém-nascido; além do que estão amplamente relacionados à incidência de cânceres.
Diante disto, o Instituto Nacional de Câncer José Alencar Gomes da Silva (INCA) recomendou em nota técnica de 2015, que foi acostada aos autos, o estabelecimento de ações que visem à redução progressiva e sustentada do uso de agrotóxicos, dentre elas, o fim da isenção fiscal para esses produtos. Vale destacar que os trabalhadores rurais e comunidades indígenas e quilombolas são os mais atingidos pelo uso de agrotóxicos, devido à uma maior exposição ambiental, mas também o consumidor final, que ingere cotidianamente ingredientes ativos diversos através de alimentos contaminados. Ainda mais grave é o fato de que 30% das substâncias permitidas no Brasil são proibidas na União Europeia (EU), justamente por seu impacto na saúde humana e no meio ambiente, e que, segundo o Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (PARA) da Anvisa, um terço dos nossos alimentos, tanto os in natura como os Industrializados, estão contaminados.
Não se tem dimensão das implicações disto para a saúde pública, como bem pontuou o Excelentíssimo Ministro André Mendonça em seu voto, afirmando que em mais de 40 anos “não houve esforço governamental no sentido de avaliar os resultados dessa política isentiva, reexaminar os prognósticos acerca de se e como essas desonerações continuam a fazer sentido, ponderar as alternativas exsurgidas com o tempo, ou mesmo quantificar os impactos financeiros e orçamentários dessas medidas”. Em contrapartida, dentre as muitas pesquisas elaboradas pelas universidades, destaca-se a constatação de que para cada $1 gasto na compra de agrotóxicos o sus gasta $1,28 no tratamento apenas das contaminações agudas, este dado pode ainda estar muito aquém da realidade, visto que a subnotificação seria de 1 caso para 50 não contabilizados, assim como por não englobar as contaminações subagudas e crônicas, como é o caso do câncer.
Claramente, trata-se aqui de uma internalização dos lucros por empresas multinacionais que movimentam em torno de 60 bilhões de dólares por ano, enquanto a externalização dos custos recai sobre a população e, por consequência, sobre o sistema único de saúde, em evidente afronta ao princípio do poluidor-pagador.
Por fim, adentramos na ofensa ao princípio da seletividade, que determina em seus arts. 153 e 155 que o imposto será seletivo de acordo com a essencialidade do produto. Esta essencialidade não se trata de uma concepção moral ou ideológica, mas de uma real verificação da importância do produto para que se alcance uma justiça fiscal.
Aqueles que fazem a defesa da manutenção da política fiscal ora questionada utilizam-se do fundamento da necessidade de manutenção da acessibilidade do valor dos alimentos. Todavia, se a intenção é proporcionar alimentos mais baratos, que a política seja direcionada a estes, inclusive beneficiando aqueles e aquelas que se dedicam a produzir de forma ambientalmente correta e possibilitando que a população acesse alimentos livres de agrotóxicos.
Como levantado pelo relator desta ação, excelentíssimo Ministro Edson Fachin, em seu irretocável voto “na medida em que a seletividade deve observar também a coletividade, o estímulo ao uso de agrotóxicos (e o desestímulo a outras alternativas) por meio de incentivos fiscais vai de encontro ao direito constitucional ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.” Lembramos que não se está discutindo uma proibição destes produtos, nem mesmo que a extrafiscalidade seja aplicada com a imposição de alíquotas maiores, como se faz no caso de outros produtos danosos, como o álcool e o cigarro, mas sim que eles não sejam isentos, proporcionando, por parte dos seus usuários a busca por uma redução no seu uso através de outras tecnologias, ao tempo que arrecada aos cofres públicos possibilitando o financiamento da saúde e da pesquisa que nos aponte um caminho mais sustentável.
No período entre 2010 e 2018, a quantidade de agrotóxicos comercializados no Brasil aumentou mais do que o dobro do que cresceu a área cultivada, o que demonstra a necessidade de políticas que, em vez de incentivá-los, reduzam seu uso. Apesar do arcabouço científico acostado aos autos da ADI 5553, após 8 anos da propositura desta ação, há uma gama de recentes achados, como é o caso das pesquisas que relacionam glifosato, o agrotóxico mais utilizado em nossas lavouras, com o aumento de casos de transtorno do espectro autista, no que a escuta dos profissionais envolvidos contribuiria. Noutro giro, há uma ausência de dados governamentais que auxiliem na análise de sopesamento dos direitos fundamentais aqui aventados.
Em Auditoria do Tribunal de Contas da União para a preparação do governo brasileiro para a implementação da Agenda 2030 e dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (Acórdão 709/2018) foi apontado como a produção de conhecimento sobre os resultados das desonerações é imprescindível para retroalimentar o processo decisório governamental acerca da manutenção, renovação, alteração ou extinção desses incentivos tributários, no entanto, até o momento, não se tem conhecimento se esse material foi produzido.
A divergência dos votos proferidos enquanto a ação encontrava-se no plenário virtual, demonstra a complexidade desta temática, apontando para a necessidade de um maior amadurecimento, no que impulsionou o PSOL a defender sua conversão em diligência para que ocorra Audiência Pública para a oitiva de especialistas da áreas da saúde, meio ambiente, tributação, trabalho e comunidades tradicionais, que são as mais afetadas por essas substâncias. Tendo sido acatado.
Encontra-se nas mãos da nossa geração tomar as melhores ações para a preservação do meio ambiente e saúde humana, como nos convoca as recentes tragédias climáticas, sendo a redução do uso de agrotóxicos para a concretização de uma transição agroecológica medida inadiável.