Os jovens do campo no Brasil, hoje, vivem um duplo desafio que os tem levado quase sempre à migração: um, mais antigo, está em enfrentar a invisibilidade social – ficando fora das agendas governamentais e convivendo com a carência de políticas públicas; e outro, mais recente, está relacionado à resistência às injustiças ambientais, provocadas pela ação de grandes empreendimentos que têm gerado profundas desestruturações no modo de vida das populações camponesas.
Desde a década de 1990, o Brasil tem se transformado em exportador de commodities – produtos de origem primária (in natura) ou com baixo valor agregado (pequeno grau de industrialização) – para os países centrais. A ênfase nesse modelo econômico tem levado nosso país a “apostar todas as suas fichas” em atividades de setores como o agronegócio, a mineração, a geração de energias, etc., com consequências perversas, dado que são atividades danosas ao ambiente, à saúde e ao bem estar de grupos sociais, sobretudo, aqueles que habitam o meio rural, onde se dá a maior parte dos processos relacionados a tais atividades.
Esses jovens são submetidos a processos de vulnerabilização quando são vítimas de injustiças ambientais, expressas na degradação do ambiente, na expulsão de agricultores de suas terras, nos riscos à saúde da população, na desestruturação social, sendo diretamente implicados em situações de violência, exploração sexual, migração compulsória, etc.; mas também quando suas subjetividades são disputadas para que legitimem o empreendimento econômico junto aos seus familiares – principalmente, os convençam em caso de desapropriações – e impulsionem o discurso do desenvolvimento e da geração de emprego e renda.
O Núcleo Trabalho, Ambiente e Saúde – TRAMAS, da Universidade Federal do Ceará (UFC), junto a movimentos sociais do campo e a lideranças comunitárias, elaborou um projeto de “co-labor-ação social” – termo que utilizamos em lugar de “extensão” – para o fortalecimento da autonomia de jovens do campo frente a um grande empreendimento que prevê, para os próximos anos, a instalação de um complexo industrial de mineração e beneficiamento de urânio e fosfato, da jazida de Itataia, situada entre os municípios de Santa Quitéria e Itatira.
O projeto Meio Ambiente, Saúde, Comunicação e Cultura – Transformações Territoriais e a Juventude no Sertão Central Cearense foi realizado com 35 jovens de assentamentos rurais, vilas e pequenos distritos dos municípios de Santa Quitéria, Itatira e Canindé, nos anos de 2015 e 2016, e assumiu como um de seus desafios a construção de um eixo temático de Arte e Cultura, certo da importância do processo de democratização cultural para o fortalecimento da juventude.
Se a cultura está relacionada à reprodução e à produção do significado dado às coisas por aquele grupo social, e é a partir dela que o integrante desse grupo responde aos desafios a ele apresentados, reconhecíamos a importância de estimular os jovens à aproximação, à interação e à apropriação do imaginário, das narrativas, das formas de expressão, das maneiras de ser de sua comunidade. E, desse modo, fortalecer os movimentos de resistência diante da imposição de uma concepção de mundo economicista, desterritorializada, que nega a autonomia dos sujeitos, deslegitima os saberes e desconsidera os propósitos locais.
Não se trata de defender uma visão romântica que destaca o popular da realidade, advogando o resguardo do saber popular e sua proteção ao desenvolvimento de uma lógica do capital. Não. Entendemos que as culturas não estão em nichos e não são estáticas; ao contrário, interagem entre si e são efetivamente dinâmicas, se reproduzem e se produzem continuamente. Questionamos, no entanto, as trocas desiguais de bens materiais e simbólicos entre as culturas e a subalternização das culturas populares, e enfatizamos o reconhecimento e a valorização de sua própria cultura como um elemento de fortalecimento da autonomia e, portanto, de redução da vulnerabilidade desses jovens.
O eixo temático Arte e Cultura no projeto considerou quatro aspectos fundamentais: a) acesso às obras artísticas e às formas de expressão dos bens culturais; b) informações gerais relacionadas à cultura e à arte; c) atividades de formação; d) possibilidade de criação e produção da cultura; de modo que esses jovens pudessem i) interagir com os bens culturais, sobretudo aqueles produzidos em seu território; ii) conhecer e valorizar as produções de diferentes grupos sociais e étnicos; iii) descobrir-se enquanto produtores – não apenas consumidores – de cultura; iv) ler o mundo criticamente nas formas estéticas.
Para tanto, iniciamos uma série de diálogos com o Projeto Arte e Cultura na Reforma Agrária (PACRA), vinculado ao INCRA, com arte/educadores, gestores e produtores culturais, militantes de movimentos sociais, associações comunitárias e os próprios jovens, a fim de construir coletivamente uma série de ações que foram distribuídas nos dois anos do projeto. Organizamos a) apresentações artísticas; b) oficinas teórico-práticas; c) “Narrativas da comunidade”, compreendendo uma série de rodas de conversa sobre as histórias do surgimento da comunidade, das lutas dos moradores, etc.; d) “Noites Culturais”, integralmente organizadas e realizadas pelos jovens, sendo um espaço-tempo para experimentar e criar em diversas linguagens artísticas (música, teatro, dança, poesia); e) visitas a equipamentos culturais; f) entrevistas a artistas, grupos artísticos ou coordenadores de ações culturais nas comunidades.
Ao final do projeto, um jovem do Assentamento Ipueira da Vaca, em Canindé, nos disse: “houve uma identificação muito forte em ser jovem do campo, em me reconhecer na minha localidade, no meu assentamento, reconhecer os grupos sociais em que eu era envolvido como, por exemplo, eu posso citar o Reisado Mestre Nel Ramos, que é o reisado da minha família e eu não conhecia, assim, a fundo”. Esse jovem, em seu depoimento, toca nos pontos do fortalecimento de processos identitários e da sociabilidade comunitária, da gestação de uma prática cultural capaz de fomentar o desejo de conhecer a si e ao outro, da consolidação de um sujeito político.
Pensamos, assim, que um processo de democratização da cultura – para além de promover o acesso às obras artísticas em sua diversidade, possibilitar diálogos interculturais, oferecer informações acerca da arte e da cultura, reconhecer e valorizar as produções artístico-culturais locais – pode ser considerado como importante ação política, na medida em que gera entre os jovens uma atmosfera social favorável para que assumam o “ato de dizer a sua palavra”, como propõe Paulo Freire, junto aos seus, em sua comunidade, e frente àqueles que desconsideram sua cultura, sua gente, suas vidas.
Por Fernando Leão, arte-educador e integrante do Núcleo Tramas/UFC