Por Margarida Marques*
Passamos dos 59 mil casos confirmados de covid-19. Já contamos mais de 4000 mortos. Esses dados são oficialmente subnotificados. No mundo, já são mais de 2 milhões de infectados e mais de 200 mil mortos. Em todos os cenários, há subnotificacão. Então, podemos entender que estamos diante de uma realidade sem precedentes quanto à sua gravidade, especialmente porque a testagem em massa não é uma realidade factível.
Pandemia, uma realidade de guerra.
Muitos são os impactos e as consequências sobre a população mundial. Por certo, as desigualdades regionais, culturais, econômicas e sociais afetam de forma distintas os vários países. Os custos também serão computados diferentemente, mas é certo que sobre os mais pobres recairão os maiores custos. Isso implica entre de países e dentro dos países.
Pouco tempo, muitos dramas
No início dessa crise, se afirmava que, embora o contágio fosse muito rápido, a letalidade era muito pequena. Essa afirmação não demorou a ser confrontada com a realidade e, em torno de quatro ou cinco meses, vimos os sistemas de saúde (ou a ausência de sistemas) de países ricos colapsarem e cenas dramáticas de valas comuns sendo cavadas para enterrar as vítimas que se avolumam num absurdo colapso funerário.
A falta de vacina e de medicamentos e o contágio rápido por contato social levaram as autoridades da saúde a definirem o isolamento social como a medida, nesse momento, mais eficiente para reduzir o crescimento da curva de contaminação.
Isolamento social significa uma mudança cultural e tem impactos sociais e econômicos. Para as classes média e alta, reorganizar suas rotinas e garantir as exigências de higiene é algo muito menos traumático e muito mais possível do que para amplas parcelas empobrecidas da população, que têm de enfrentar problemas de moradia, segurança, acesso a materiais de higiene e as chantagens/pressão econômicas dos patrões.
Para que se torne efetivo o isolamento social é preciso então que os governos ofereçam as condições mínimas para que as populações possam cumprir o mantra do “FIQUE EM CASA”.
Aqui, começamos a ver que a crise sanitária vai ser reveladora de uma série de profundos problemas sociais e estruturais.
Desde que começou a Pandemia, a organização mundial da saúde (OMS) e os especialistas têm alertado para o risco da chegada da doença às comunidades e favelas, a começar pelas condições de moradia. Garantir o isolamento e as ações de higiene torna-se um desafio para essas populações uma vez que dados do Sistema Nacional de Informação sobre o Saneamento (SNIS) mostram que 35 milhões de brasileiros não têm acesso a água tratada e cerca de 100 milhões não têm serviço de coleta de esgoto.
Além disso, no caso do Brasil temos uma imensa parcela da população em completa desassistência social e econômica e que neste momento tiveram sua condição agravada. São os que se encontram abaixo da linha da pobreza, que encontram-se desempregados e que antes da crise já representavam cerca de 12 milhões de Brasileiros.
Também foram impactados os autônomos e os informais
Não podemos esquecer que existem também realidades que já são por si agravadas e que neste momento tendem a um aprofundamento. São os que vivem em situação de rua e os privados de liberdade. Outra realidade que precisam ganhar evidência é a dos quilombolas, indígenas e trabalhadores rurais
Ou seja, no caso brasileiro o enfrentamento a Pandemia do covid19 passa pela construção de ações articuladas que dê suporte especialmente a essa parcela da população para que as ações de enfrentamento do coronavírus não sejam ações de aprofundamento da condição de desigualdade e miséria.
Brasil: nossa terra tem palmeiras onde cantam os sabiás, mas tem também negacionistas e fascistas
Desde o início dessa pandemia, temos um desafio imenso, uma vez que o presidente tem assumido uma conduta negacionista da gravidade da doença, contradizendo em inúmeras ocasiões as recomendações da OMS e do seu próprio ministério da saúde, de isolamento social, além de dificultar a efetivação de medidas de assistência social e de apoio econômico que contribuam para dar o suporte necessário a que amplas parcelas da população possam aderir ao isolamento social.
Para além das motivações negacionistas, a maior preocupação do presidente é em relação aos impactos que o isolamento social pode ter na economia que já não vinha apresentando bons resultados, o que pode ser negativo aos seus planos de reeleição.
Assim, num descaso e descompromisso com as vítimas e seus familiares e com o povo de uma forma geral, o presidente patrocina uma crise após a outra, minimizando a gravidade da pandemia enquanto incentiva a quebra do isolamento.
Contraditoriamente, o isolamento tem servido para o presidente dar fôlego ao governo que vinha sofrendo crescente desaprovação. Ele negocia com o centrão a custa de cargos. Para forçar o fim do isolamento, demite em plena pandemia o ministro da saúde, que já vinha sofrendo intervenções na dinâmica de transparência e diálogo com a imprensa. No seu lugar, colocar Nelson, o cara de tacho, que até o momento parece estar vendendo plano de saúde e que dividirá o ministério com um militar (mais um). Considerando que devemos entrar no pior momento da crise e com o patrocínio e convocação de atos pela flexibilização, podemos ter um caos anunciado em curso.
Para acessar e monitorar as investigações que atinge os recrutas-filhos, ele muda a chefia da Polícia Federal e força a demissão do ministro da justiça. Processo calculado, pelo governo e pelo ex-ministro, numa provável antecipação das futuras disputas eleitorais
Podemos identificar o quanto vai ficando nítido que o presidente, a cada dia, vai buscando implantar um governo auto centrado, personificado, fortalecido a partir da radicalização de seus apoiadores, caracterizando cada vez mais o governo como de extrema direita.
Nós, nossos desafios
A esquerda, de um modo geral, e os movimentos sociais já vinham enfrentando muitas dificuldades para um confronto com o processo de golpe e seus desdobramentos, que vem se dando na sequência que culminaram com a eleição do Congresso mais conservador e reacionário e com a eleição de Bolsonaro
A sequência de derrotas que vamos acumulando como reforma trabalhista, reforma da previdência, destruição de espaço de monitoramento e execução das políticas, aumento nos ataques e assassinatos de ativistas e lideranças indígenas, e um crescimento nos crimes ambientais.
O que representavam as redes sociais para os ataques racistas, homofóbicos, lgbtfóbicos e de intolerância religiosa, nesse governo se constitui em gabinete de Estado e usa a estrutura de governo para os ataques, organização de atos políticos e disseminação de fake news.
Assim, a pandemia torna-se um desafio a mais neste cenário já muito grave. Não podemos sair às ruas, nem convocar atos, não podemos organizar greves, nem manifestações. Ainda não conseguimos usar as redes para além de nossas bolhas.
Ainda assim, nossa atenção deve se voltar para a busca de alternativas de comunicação, articulação e pressão política.
Há desafios mais que urgentes neste momento:
Defesa da vida. Já temos estados em situação gravíssima. O Norte e o Nordeste devem ser as regiões com maiores sofrimento dessa pandemia. Fruto das desigualdades regionais. A necessidade de sobrevivência está levando milhões de pessoas à flexibilização do isolamento. E a demora do governo em atender essa população é parte da estratégia para enfraquecer o isolamento. Ocorre que serão esses segmentos os mais vulneráveis. E as consequências serão o aprofundamento do grosso social, levando um tempo maior para superação. O Brasil é um dos países que menos testa. Não sabemos quais os números reais de vítimas. Não temos um plano central de enfrentamento.
Pensar sobre nossas formas de comunicação: conteúdo e formas. Precisamos encontrar como sair do denuncismo para uma disputa ideológica, proposição e comunicação com amplo setores.
Estabelecer diálogo e construção de pontes. Dialogar com setores de esquerda e progressistas que possam constituir frente real e alternativa ao projeto em curso.
Fortalecer as campanhas de fortalecimento do SUS e SUAS. Lutar contra as políticas de privatização e de desmonte do SUS e do SUAS.
Luta pela continuidade da renda mínima. Viveremos um momento muito duro pós-pandemia. É preciso mecanismo de suporte às populações mais vulneráveis.
Defesa da democracia. Se o governo avançar mais para um desenho de extrema direita com ocupação das instituições, nossas tarefas serão ainda maiores e então deveríamos nos preparar para uma luta mais longa.
Assim, nesse momento precisamos sair vivos e vivos nos manter. E reaprender sobre paciência histórica para termos a sabedoria de identificar quais ferramentas dispomos para atravessar esse momento: ferramentas institucionais e jurídicas. Precisamos tomar fôlego. Esse é o momento.
*Margarida Marques é ativista de direitos humanos de integrante do Integrante do Instituto Negra do Ceará (Inegra) (Foto: Agência Brasil)