Aquífero Jandaíra, Rio Cocó, Maranguapinho, Guaíras, Jaburu, Poti, Jaguaribe, Livramento, Lagamar do Cauipe, Castanhão. Açudes, aquíferos, mares, lagoas e rios. Ao centro do auditório Murilo Aguiar da Assembleia Legislativa do Ceará, o pote de barro – objeto símbolo do povo sertanejo que historicamente teve (e ainda têm) o acesso à água negado, recebeu as águas de diversas fontes do Estado, consagrando a união entre os territórios na mística que deu início à Assembleia Popular das Águas, em Fortaleza, no dia 28 de fevereiro.
O momento marcou o encontro das lutas em defesa da água no Ceará a partir do lançamento oficial do Comitê Estadual “Povos e Águas” do Fórum Alternativo Mundial da Água. O FAMA, a nível nacional, se firma a partir do momento em que o Brasil é definido para sediar o 8º Fórum Mundial da Água (FMA), evento organizado pelas grandes corporações internacionais e nacionais com o propósito de facilitar negociações que garantam o uso econômico da água.
Já o Fórum Alternativo se constrói por povos, movimentos, sindicatos e organizações sociais de todo o País para os quais a água não está em negociação como mercadoria. Também conclama que globalmente as pessoas se incomodem com a destruição ambiental gerada pela engrenagem capitalista e que se envolvam na frente de luta em defesa da água e dos povos. No acirramento dos conflitos pela água, “o compromisso do FAMA Ceará é com a luta do povo e contra aqueles que estão rifando nossas vidas dentro dos gabinetes”. É o que demarca na fala de abertura da Assembleia Francisco Nonato, do Conselho Pastoral de Pescadores/as, que está entre as organizações que coordenam o Comitê Estadual do FAMA.
O desafio está registrado nos dados de pesquisa do Instituto Trata Brasil: são 34 milhões de brasileiras e brasileiros que não tem acesso à água de qualidade. No mundo todo são 663 milhões, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU). Os números precisam revelar as histórias de vida de famílias e comunidades inteiras, além de escancarar as suas causas, tornadas invisíveis para facilitar a desestruturação dos modos de vida sustentáveis, barrar a busca por justiça e manter a exploração desenfreada do meio ambiente.
A preocupação também deve ser com os direitos da natureza. Como compreensão de que a vida humana não existe estando desassociada dela, Paulo Belim (Kris), pela organização Nacion Pachamama, convoca para que esta perspectiva seja premente. “A água nos constitui. (…) Que a gente não pense mais só em desenvolvimento sustentável. Prolongaremos ao máximo este modelo até onde a terra aguentar?”, provoca à reflexão. No campo judicial, as lutas populares também acontecem, apesar dos desafios. João Alfredo, da Rede Nacional de Advogadas/os Populares, compartilhou as recentes ações civis feitas para impedir a retirada da água do Lagamar do Cauipe pelo Governo do Estado. Comunidades da região, dentre elas a do povo indígena Anacé, tem denunciado os impactos e mantido resistência.
Tribuna Popular Povos e Águas - Após a mesa de abertura, o momento central da Assembleia para os diálogos e a socialização do mapa das lutas em torno da água foi feita através da Tribuna Popular Povos e Águas. Os territórios do Vale do Jaguaribe, Sertões de Crateús e Inhamuns, Santa Quitéria, zonas costeiras, região metropolitana de Fortaleza, Cariri, Ibiapaba e Itapipoca estiveram representados por agricultoras/es, pescadoras/es, militantes, pesquisadores/as, sindicatos, partidos, movimentos e organizações populares do Estado e nacionais.
O cenário de contaminação das fontes de água por agrotóxicos e resíduos das atividades de mineração e carcinicultura; a apropriação das águas dos aquíferos, lagos e rios por grandes projetos e empresas; os problemas de abastecimento e de saneamento básico nas zonas rurais e urbanas; a política nacional de energia focada nas hidrelétricas e na política hídrica focada nos açudes, com o custo social das desapropriações, do acirramento da luta por terra e da negação do direito à água para as comunidades mais próximas dos grandes reservatórios comprovam que o modelo de desenvolvimento capitalista está gestando a guerra mundial pela água, com consequências ambientais e sociais que podem ser irreversíveis.
“Sem água, sem vida, é igual a gente sem território e sem identidade”, desabafa Marilene, de Aracati, do Movimento de Pescadoras/es Artesanais. “Nunca imaginei que chegaria a ter que lutar pela água”, algo tão acessível, tão natural, como os banhos nas chamadas cacimbinhas da região nos tempos em que era criança. A realidade de uso sustentável das fontes de água por tantas comunidades e povos originários que passaram pela Tribuna já não é mais parte do cenário atual exposto. A degradação vem rápida e avassaladoramente, como afirma Cleomar, da comunidade quilombola do Cumbe. Raimundo Crispino, do Assentamento 10 de Abril, no Crato, compartilha com os companheiros do Fórum Popular das Águas do Cariri que as fontes da região estão quase todas nas mãos de poucos “donos”, incluídos aí políticos e empresários. “Não privatizaram as águas das nuvens porque não podem. Mas uma vez que as chuvas caem nos rios e nos açudes, passam a ser privatizadas”, constata.
Enquanto comunidades de vários municípios do Estado sofrem o racionamento forçado e veem decisões dos Comitês de Bacias garantirem o abastecimento da Região Metropolitana de Fortaleza, grande parte da água desviada segue as áreas de perímetro irrigado para o agronegócio e para o Complexo Industrial e Portuário do Pecém. Nos bairros periféricos da capital, por sua vez, encontramos a falta de saneamento básico, abastecimento irregular e a destruição das poucas fontes ainda existentes.
Painel Lutas Populares em Defesa da Água - À tarde, o painel “Lutas populares em defesa da água como direito e não mercadoria” trouxe a relevância das pesquisas e práticas acadêmicas em prol das lutas populares, com a exposição do professor Jeovah Meireles, do departamento de Geografia da Universidade Federal do Ceará. A formação em cartografia social tem sido uma das valiosas contribuições de pesquisadoras/es para o empoderamento popular de diversas comunidades e para a denúncia das disputas enfrentadas em seus territórios.
A atuação sindical na luta contra a privatização das empresas e do setor de saneamento foi o tema abordado por João Viana, dirigente do Sindicato dos/as Trabalhadores/as em Água, Esgoto e Meio Ambiente (Sindiagua). Com o argumento de “buscar” a universalização dos serviços, projetos de Parcerias Público Privada (PPP) têm sido portas de entrada para o domínio de empresas. Viana faz o alerta: cidades de várias partes do mundo (entre elas Paris, Buenos Aires e Berlim) que passaram por processos de privatização de seus serviços nas décadas de 80 e 90 estão fazendo o movimento contrário. Ou seja, reestatizando após prejuízos enormes causados por privatizações que fizeram o interesse econômico de poucos se sobrepor ao direito da população à água e ao saneamento de qualidade.
José Josivaldo, dirigente nacional do Movimento dos/as Atingidos/as por Barragens (MAB), por sua vez, localiza o Brasil no cenário mundial da disputa econômica da água, tendo o território com as maiores reservas de água doce do mundo e, portanto, na mira de grandes empresas nacionais e multinacionais, como Ambev, Nestlé e Coca-Cola, financiadoras do Fórum das corporações. Para Josivaldo, não se pode fazer essa luta sem tratar do acesso. “Ainda somos milhares de pessoas sem condição adequada de consumo e de produção”. Compartilha da indignação das comunidades do interior com relação ao abastecimento: “Não dá para concordar que a água venha para Fortaleza e Região Metropolitana, para as indústrias, e não abasteça a população das comunidades em torno do Castanhão. Isso é contraditório!”.
No debate de encerramento, as falas de companheiras e companheiros presentes apontaram para a necessidade de construir o sentimento de unidade e fazer o esforço do encontro das lutas, dando amplitude, visibilidade e força local, nacional e internacional pela defesa da água e dos povos. Os caminhos desta articulação, com estratégias de luta e ações permanentes, são perspectivas para que Comitê Ceará do FAMA siga muito além do Fórum Alternativo Mundial da Água e possa se estabelecer como um espaço democrático, plural e de convergência para que seja possível mudar os rumos da nossa história. (Por Raquel Dantas – jornalista da Cáritas Ceará, pelo Comitê Fama Ceará / Texto publicado originalmente no site http://fama2018.org)