"Ato isolado", diz o governo estadual, tentando dissimular uma realidade que nos marca hoje. Quem acompanha as políticas públicas no Ceará sabe que isso é consequência. As crises se sucedem e as "soluções miraculosas", idem. Lembremos do caso da tortura do pedreiro na Furtos e Roubos; Caso França; Grupo de Extermínio da Pague Menos; crise do socioeducativo; Chacina de Messejana e as tantas mortes provocadas por facções. Para cada crise, uma "solução". Vieram Sindes; distrito modelo; Ronda do Quarteirão; Raio; Ceará Pacífico... Em geral, propostas de forte apelo público, pouca reflexão, ausência de planejamento e regularidade, quase nenhuma intersetorialidade. O Ceará conta com sociedade civil, trabalhadores civis e militares e pesquisadores de universidades que se debruçam sobre esse desafio seriamente. Alguns desenhos de políticas foram inclusive muito bem elaborados. Mas não há implementação ou, quando há, não há escala. É miúdo. No geral, resta a resposta do mais do mesmo.
Camilo Santana parece perdido. Repete sempre a mesma coisa: culpa o Governo Federal, fala da ampliação do Raio e busca responsabilizar a vítima por sua própria morte. Às vezes responsabiliza o Judiciário. E assim se foram 3 anos. Em relação ao Governo Federal, sim, é verdade, eu concordo. Nos falta um plano nacional de redução de Homicídios e uma política nacional de segurança pública com estratégias bem pensadas e orçamento garantido. A política nacional sobre drogas é uma estupidez. Mas o Ceará saltou de 20º estado em Homicídios em 1990 para o 2º atualmente. Isso nos obriga a pensar o que aconteceu aqui de diferente. Por mais que os governadores digam que querem prevenção, promoção social e mediação de conflitos, o orçamento vai mesmo para a coerção e policiamento ostensivo. Temos 26 mil presos, dos quais metade é formada por jovens. Uma enorme população a ser recrutada para os grupos armados, já que os presídios estão tomados por eles. São 15 assassinatos por dia, sendo 2,7 de adolescentes.
A diferença de investimento em estratégias de prevenção com as de repressão é absurda. Ninguém diz que é fácil. Fazemos oposição a esse governo, mas não somos irresponsáveis. O que mais me indigna e enerva é a recusa ao diálogo real e substantivo, a incapacidade de liderar um amplo e largo processo intersetorial com políticas de promoção em territórios que todos sabemos quais devem ser, assim como a aposta em tratar a população periférica como inimiga (as torres do Moroni são a coisa mais patética que poderia ser inaugurada nesse contexto). Tudo parece ser faz de conta. Os investimentos em promoção e prevenção são infinitamente pequenos para o tamanho do problema. Se assim for, os grupos armados vão continuar a recrutar jovens, corromper o Estado e matar.
De outra parte, é preciso pressionar o governo desde a sociedade e a sociedade precisa disputar outras demandas. Os governos apoiam a inauguração cinematográfica de operações repressivas porque há uma recepção positiva para isso. A grande mídia tem cerca de 10 horas de policialescos por semana. Isso molda a demanda social para mais "força". Para boa parte da população, assustada e violentada, força (inclusive com a desobediência da lei) é o que vai "resolver". Lideranças comunitárias, interreligiosas, comunicadores, ONGs, parlamentares do campo progressista devem ser mobilizadoras/es e educadoras/es. Toda vez que púlpito, tribuna ou TV são ocupados pelo discurso do ódio, do hiperencarceramento, da inflação penal, é o gatilho que se aciona. Mais distantes ficamos de iniciar uma espiral positiva. O resultado: mais jovens negros precarizados, morrendo ou tendo suas vidas marcadas para sempre no sistema penal.
Não adianta minimizar nem inventar a roda. Os exemplos positivos são muitos. A inteligência e o investimento na promoção e prevenção social são melhores que a força do conflito armado. Reconhecer o real sentido de urgência, dar assertividade necessária a esse desafio, planejar o curto e longo prazos, manter a regularidade das ações, convocar todas as instâncias para pactuação. Sem isso, lamento que possa piorar e não é isso que quero. Essa é uma luta democrática. Deve reunir nossos melhores esforços. Não se pode pensar em nada numa sociedade em que a parcela mais vulnerável e oprimida sequer consegue chegar na escola, em que as políticas não asseguram algum futuro, em que não há perspectiva alguma de renda digna, em que se é tratado permanentemente sob o signo de você ser o perigo, em que as mães das periferias vivem e choram a incerteza da hora do filho voltar.
Democracia é poder partilhado, justiça social, espaço público ocupado, mobilidade, acesso a políticas que lhe garantam dignidade, poder escolher que vida viver. Juventude não é perigo. É a nossa maior oportunidade. Nós temos que agir e não há tempo a perder, pois a cada dia enterramos 3 jovens cearenses. Há "perigo na esquina e o sinal está fechado" para a juventude negra e pobre. Mas não podemos ser tomados por essa sensação de irreversibilidade. Há centenas de coletivos de juventude com trabalhos espetaculares que vivem sem e apesar dos agentes estatais muitas vezes jogarem contra. Um bom começo seria chamá-los e valorizá-los, afinal quem está no território é que sofre o pior e sabe o que ele tem de melhor. (Foto: reprodução/Agência Brasil)