No dia 2 de janeiro de 1971, em tentativa de latifundiários de despejar camponeses, dois confrontos deixaram quatro mortos, vários feridos e iniciou uma intensa perseguição contra líderes rurais, suas mulheres e filhos. O episódio ocorreu na fazenda Japuara, no município de Canindé, se tornando um exemplo da violência praticada no campo, endurecida pelo regime militar através das polícias estaduais.
Após meio século, as vítimas dos ataques em Japuara estão, finalmente, tendo reconhecido o direito de indenização às pessoas detidas por motivos políticos no período de 2 de setembro de 1961 a 15 de agosto de 1979, como previsto na Lei 13.202/2002. A inclusão só se dá, pois, a partir de uma emenda do deputado estadual Renato Roseno (Psol), o prazo para solicitar a reparação tornou-se imprescritível. A alteração ocorreu em 2019.
Como membro da Comissão Especial de Anistia Wanda Rita Otho Sidou, Roseno foi relator de um pedido de reparação de uma das vítimas de Japuara, o agricultor Alfredo Ramos Fernandes, de 84 anos. Integrante do movimento dos trabalhadores rurais, ele foi um dos cinco homens perseguidos na mata pela polícia e que, ao ser encontrado, passou um mês preso numa unidade do Corpo de Bombeiros, sendo indiciado e condenado.
Conheça a história
Como narra o Relatório da Comissão Nacional da Verdade, as violências praticadas na Fazenda Japuara iniciaram no final dos anos 1960 e se intensificaram no início dos anos 1970. O camponês Francisco Blaudes de Sousa Barros, em seu testemunho, conta que o conflito começou com a venda da propriedade, em 1968, a Julio Cesar Campos. O primeiro dono da área, Anastácio Braga Barroso, havia arrendado a terra a seu sócio, Firmino da Silva Amorim, que deixou-a sob a administração de Pio Nogueira.
Ao colocar a propriedade à venda, a herdeira, Hebe Braga Barroso, assumiu o compromisso de dar prioridade ao antigo ocupante. O acordo verbal foi descumprido, vendendo a área a outro interessado. O ocupante entrou na Justiça com uma ação preferencial de compra e outra exigindo indenização pelas benfeitorias. O novo proprietário solicitou imissão de posse e ganhou a questão. Em 1969, foi expedido o mandado contra o ocupante e contra os moradores-parceiros. A ação atingiu 59 trabalhadores rurais e suas famílias.
O mandado judicial concedia 24 horas para que deixassem a área. O advogado Lindolfo Cordeiro, designado pela Federação dos Trabalhadores na Agricultura do Estado do Ceará (Fetraece), dedicou-se à causa dos moradores, obtendo uma decisão favorável que sustou a ação de despejo.
Em 2 de janeiro de 1971 ocorreram os dois confrontos mais graves. No primeiro, houve uma tentativa de despejar os moradores à força. O latifundiário Júlio Cesar Campos contratou homens que trabalhavam nas frentes de emergência da seca para derrubar as cercas, destelhar as casas dos moradores e arrombar a barragem do açude, forçando a saída dos camponeses. Estes homens contratados, quando chegaram em Japuara, seguiram até a casa de Francisco Nogueira Barros (Pio) para destruir seu imóvel. Pio tentou interromper a ação ilegal mediante apelos, mas não surtiu efeito.
O agricultor, então, dispara uma cartucheira calibre 20 em direção ao telhado da residência, onde um dos homens contratados pelo proprietário encontrava-se, sendo ele atingido entre as pernas, caindo do telhado em uma cerca de varas que o atravessou, resultando em sua morte. Depois desse fato, os homens contratados pelo proprietário retiraram-se da fazenda.
No mesmo dia, o subdelegado Cídio Martins, integrante da Delegacia de Ordem Política e Social (DOPS), acompanhado de policiais militares invadiu a fazenda e matou o agricultor Raimundo Nonato Paz — ninguém foi indiciado pelo crime. Os moradores se defendiam com foices, facões e outros instrumentos de trabalho. O confronto, no total, deixou quatro mortos e vários feridos.
Os líderes camponeses, dentre eles Alfredo Ramos Fernandes, se esconderam na mata. As mulheres e filhos enfrentaram espancamentos, humilhações e perseguições. Um dos casos de maus-tratos sofridos mais marcantes ocorreu com Francisco de Souza Barros, de apenas nove anos, que foi interrogado pela polícia, sequestrado e obrigado a carregar armas pesadas durante a caçada aos agricultores.
O grupo perseguido era formado por Francisco Nogueira Barros, o Pio; seu filho, Francisco Blaudes de Sousa Barros; Joaquim Abreu; Alfredo Ramos Fernandes, o Alfredo 21; Antônio Soares Mariano, o Antônio Mundoca; e Luís Mariano da Silva, o Luís Mundoca. Após vários dias na mata, os cinco foram presos, quando se iniciou o Inquérito Policial Militar (IPM). Depois, o caso foi remetido à Justiça comum. Dez trabalhadores foram indiciados como implicados nas mortes de um carreteiro, de um soldado e do subdelegado. Ninguém foi indiciado pela morte de um morador da fazenda.
Dias depois, a Fetraece encaminhou pedido de desapropriação da fazenda ao recém-criado Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). Temendo que o episódio estimulasse novas ações de resistência na região, o presidente da República assinou decreto desapropriando 3.645 hectares em benefício de 39 famílias. Entretanto, em 1978, o próprio assessor jurídico da Fetraece, Lindolfo Cordeiro, foi preso pelo governo militar e assassinado ao sair da prisão. Segundo o Relatório, o crime foi a mando de latifundiários.
Momento marcante
Na frente do filho e da esposa de Alfredo, Roseno defendeu o deferimento do pleito de reparação, solicitando o seu valor máximo R$ 30 mil e o pedido formal de desculpas do Estado do Ceará pelas perseguições e violências sofridas. “Está comprovado que a militância dele está intrinsecamente ligada à luta pela reforma agrária. Ele, em comunhão com outros companheiros, buscava lutar contra o autoritarismo imposto pelo regime ditatorial, sendo o ápice da perseguição sofrida sua participação no evento conhecido como a ‘Chacina de Japuara’”, defendeu o parlamentar.
A relatório do parlamentar foi deferido por completo entre os membros presentes do Comissão Especial de Anistia Wanda Rita Otho Sidou. Com a aprovação, Roseno leu o pedido formal de desculpas aos familiares presentes, que será, mais a frente, entregue ao requerente.
“O Estado do Ceará, através do presente instrumento, concretiza a reparação simbólica ao senhor Alfredo Ramos Fernandes e à sua família e, nesta oportunidade, pede desculpas pelos constrangimentos em que foi submetido durante o período em que esteve suspensa a ordem jurídico-democrática nacional a despeito dos tratados e convenções internacionais, até então firmados pelo Brasil. Com este gesto, espera estar contribuindo para que fatos semelhantes não voltem a se repetir no futuro”.
Outra vítima da Japuara que teve o direito reconhecido foi a agricultora Zilda Pereira de Oliveira. A relatoria do seu caso foi feita pelo professor Márcio Sousa Porto, que defendeu o deferimento da reparação e também o valor máximo. Todos os conselheiros acataram.