Depois de pintar quatro, cinco quadros no mesmo embalo de quem poderia pintar uma só tela, José William Crispim Alves sente uma mistura de alegria, satisfação e prazer. É assim que define a própria terapia, feita quando sente vontade ou necessidade. Isolamento para ele só quando adentra o mundo composto pelo painel, pincéis e tintas. Morador do Conjunto José Walter, em Fortaleza, Crispim mostra pela casa os quadros e esculturas que têm feito nos últimos anos. Só em um quarto, guarda telas e mais telas, esculturas e mais esculturas de sentimentos eternizados nas formas abstratas de sua arte.
Crispim descobriu as artes plásticas no Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) da Regional IV, no Montese, e desde 2009 pinta somente em casa. A ajuda profissional foi necessária depois que ele foi interrogado em três delegacias por conta do sumiço de computadores da empresa de segurança privada na qual trabalhava. Pressionado, passou a conviver com vozes e decidiu tomar veneno para rato. Depois de ser internado no Hospital Psiquiátrico de Messejana, para o que considerou um tratamento “subumano”, Crispim descobriu no CAPS a possibilidade de ter um atendimento digno e encontrou o seu mais eficaz medicamento: a arte.
Aos 60 anos, pai de dois filhos e avô de dois netos, Crispim está aposentado do trabalho. Pinta por terapia e participa com as obras de exposições e concursos. Só no Rio de Janeiro já foi buscar duas premiações. Transformou o próprio caso em exemplo para outros usuários do CAPS e hoje, para além de frequentar o Centro, é militante ativo no campo da Saúde Mental. Para ele, não expor sua história de vida é assumir um preconceito já muito disseminado na sociedade. Por ocasião do Dia Nacional da Luta Antimanicomial, comemorado no 18 de maio, publicamos entrevista com Crispim sobre o poder da arte no tratamento em saúde mental e sobre sua militância no Fórum Cearense de Luta Antimanicomial. (Texto e fotos: Raissa Veloso)
Você é usuário no CAPS. Quando decidiu se tornar, também, militante da área de Saúde Mental? Crispim – Comecei a me dedicar à militância quando a gestão atual da Prefeitura Municipal de Fortaleza demonstrou descaso com a Saúde Mental, um abandono total. Não era só eu que percebia isso, mas todos os usuários e os familiares. É notório que caiu cem por cento a qualidade do serviço público. Pesquisando na Internet sobre os movimentos (pela Saúde Mental) dos estados, descobri que aqui tinha. Conheci pessoas e me entreguei, comecei a fazer parte. Eu já era usuário, mas senti vontade de entrar na luta para ver se melhora a Saúde Mental porque está um caso sério.
A discussão sobre Saúde Mental muitas vezes ainda é um tabu na sociedade. Você sente ou já sentiu algum tipo de preconceito por ser usuário do CAPS? Crispim – É um tabu. As pessoas têm muito preconceito ainda. Elas deveriam se inteirar mais, saber sobre a Saúde Mental porque é uma coisa que não pode esperar. Já senti e existe. Existe muito preconceito. Por exemplo, os CAPS estão encaminhando os casos mais leves para os postos de saúde, mas quando chega lá um laudo de transtorno mental têm funcionários que não são treinados para isso – e eu não culpo o funcionário, mas sim a gestão pública que deveria treinar o pessoal – e não atendem. Os pacientes do posto de saúde, quando veem alguém do CAPS, usam de preconceito. Às vezes, famílias que têm um usuário, alguém com transtorno, escondem essa pessoa, nem levam para o CAPS por preconceito. E isso só prejudica a pessoa que tem transtorno, porque a tendência é acelerar uma piora.
Como é um bom modelo de política pública para o usuário? Crispim – Um tratamento digno independente de raça, cor, sexo, religião, classe social. Onde pudesse mostrar para a sociedade que a pessoa que tem transtorno mental é capaz de viver no meio da sociedade, de produzir, de criar... É só ter uma chance.
O que traz energia, esperança para continuar lutando? Crispim – Eu não queria que pessoas passassem pelo que passei. Já sofri muito nos hospitais. Eu não desejo para o meu pior inimigo, apesar de eu não ter inimigo. Eu queria ver as pessoas que têm transtornos mentais mostrarem para a sociedade que elas são seres humanos igual a qualquer outra pessoa digna de criar, produzir, trabalhar.
Para os usuários do CAPS, qual a importância de ter essas atividades como aulas de artes que você gostaria de facilitar? Crispim – Na minha teoria, eu vejo assim, o tratamento de Saúde Mental é uma soma: a medicação, que só quem pode passar é o psiquiatra, o atendimento psicológico e a Terapia Ocupacional. São essas três coisas. Só com a medicação a pessoa vai ficar impregnada, “lombrada”. Juntando o remédio, com o tratamento psicológico e a terapia com certeza dá sucesso. Dá porque em mim funcionou. Na minha crise, eu vivia totalmente isolado, passei por cinco internações, cada vez mais piorando. Quando fui para o CAPS, que naquele tempo funcionava, fiz essas três coisas e estou bem.
Em qual atividade você se engajou? Crispim – Na arte. Eu faço pintura... Aprendi também a fazer umas esculturas. Mas lá não tem só as artes plásticas, tem também a dança, tem outras atividades, pessoas querem fazer poesia. E tendo incentivo a pessoa se destaca, mostra o talento dela. Muitas pessoas já se destacaram tanto nas artes plásticas quanto na dança, têm pessoas que escrevem no CAPS, mas estão encostadas, não tem o apoio. Eu lutei muito com a Secretaria de Saúde para criar um local para os artistas de todos os CAPS mostrarem seu trabalho. Mas isso nunca foi feito. Foi feito uma exposição uma vez no Centro de Referência do Professor, mas eu queria um local permanente. A Prefeitura tem condições de fazer isso, é só uma questão de boa vontade, de querer.
Você já pintava e esculpia antes de frequentar o CAPS? Crispim – Não, não tinha a menor noção de arte nem gostava. Foi no CAPS que aprendi a gostar. Eu tinha até preconceito, mas hoje vejo que é uma coisa tão saudável, tão boa. Toda pessoa, independentemente de ter transtorno ou não, deveria procurar uma arte para fazer. Ver com qual ela se identificava. Eu me identifiquei com a escultura e a pintura.
E hoje você pinta e esculpe independe de estar no CAPS? Crispim – É, em casa. Desde 2009 que eu passei a fazer só em casa. E já fiz várias exposições, já ganhei concursos, premiações...
É uma coisa que preenche... Crispim – Preenche. Sou muito, muito feliz. No começo, quando eu tinha crise, aprendi a perceber quando a crise estava para chegar. Hoje, se eu for ter uma crise eu sei os sintomas, aí o que eu faço? Vou fazer qualquer atividade artística e de repente vai embora.
Então, a arte para você é como se fosse uma medicação? Crispim – É melhor! Porque a medicação tira os sintomas, mas deixa sequelas, a pessoa pode ficar impregnada, pode ficar sonolenta... A arte tira tudo, tira os sintomas e você fica feliz, consciente do que está fazendo.
E sua vontade é poder passar isso para outras pessoas? Crispim – Com certeza. É uma coisa bastante fundamental, um tratamento digno mesmo. Tenho certeza de que os CAPS melhorariam.
É muito interessante a forma como você fala da arte. Acredita que a arte está presente na sua militância e que sua arte é uma forma de militância? Crispim – Acredito que sim. Eu falo muito na minha arte e na de outras pessoas também. A gente chama outras pessoas. Têm pessoas que já tiveram alta total do CAPS através da arte e continuam pintando. Tem um rapaz que escreve poemas lindos. Então, é por isso que eu acredito no poder da arte nos tratamentos... Hoje, se eu fosse fazer uma faculdade, eu faria de Terapia Ocupacional.
Essa experiência de passar pelo CAPS e de militar com outras pessoas transformou sua vida? Crispim – Transformou cem por cento. Eu não sei mais o que é uma crise há muito tempo, nem sintomas, não percebo nada, nada. Então, eu queria que isso acontecesse com outras pessoas.