Logo cedo, aos 16 anos, a jornalista Deidiane Sousa encontrou nos movimentos de juventude um local de abrigo para suas inquietações em relação à sociedade. Ao mergulhar nas pautas e bandeiras de luta, encontrou algo mais valioso do que a própria militância: descobriu a si mesma. Sua existência, nesse sentido, é fruto dos enfrentamentos que passou a abraçar, é resultado de muito aprendizado e resistência. Mestranda em antropologia e militante dos direitos LGBTQIA+, ela é a sexta entrevistada da série especial produzida pelo mandato É Tempo de Resistência, que celebra a passagem do 8 de março.
"No cenário atual, onde a pandemia completou um ano, percebemos que os efeitos mais violentos vão diretamente nas pessoas mais vulneráveis, como a população em situação de rua, travestis e transexuais, esses que já não têm acesso às políticas públicas ou de transferência de renda", ela denuncia. "O 8 de março vem para nos fazer refletir e compreender a dimensão do que é 'ser mulher', inclusive nas suas múltiplas identidades", destaca. Confira a entrevista. (Texto e arte: Evelyn Barreto)
É TEMPO DE RESISTÊNCIA - Como você percebeu que suas ações estavam inseridas na militância? DEIDIANE - O InÍcio do meu ativismo veio muito cedo, mais ou menos com 16, 17 anos; e isso se dá através dos movimentos de juventude, em especial no Instituto Juventude Contemporânea. Lá, tive oportunidade de participar de um projeto chamado “Conviva”, que foi uma iniciativa que trabalhava com pessoas vivendo e convivendo com HIV e Aids. Logo quando saí de casa, fui morar em uma roça de candomblé. Chegando lá, eu me deparei mais perto ainda das questões em torno da vivência de quem tem HIV. E aí, muito curiosa, sempre fui muito curiosa, fui procurar, junto aos amigos que estavam inseridos no Movimento de Luta Contra a Aids, como que eram essas questões. Após isso, logo vou para a Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV/Aids, no grupo do Ceará, e lá recebi um panfleto do Juventude Contemporânea (JC) convidando às pessoas para participar do projeto Conviva. A partir daí, eu me inscrevo no projeto e passo, também, a compreender esse ativismo; através de uma formação política, através da convivência com outras pessoas, que vou me percebendo também enquanto sujeito político.
É TEMPO DE RESISTÊNCIA - Que fatores são mais importantes para defesa de uma luta? DEIDIANE - Nesse processo, eu entro e faço parte de vários outros projetos do JC. E é aí onde eu vou descobrindo os primeiros contatos sobre sexualidade, direitos sexuais, identidade de gênero e orientação sexual. Era tudo muito novo para mim. Então, eu vou me descobrindo também no decorrer dos acessos às informações. E aí, logo depois, inIcio minha participação no Grupo de Resistência Asa Branca, o Grab, ainda sem me identificar como gay ou trans, ainda estava no processo de transição. No Grab, participo de uma pesquisa, trabalhando investigação de necessidades para jovens gays nas periferias de Fortaleza. Esse processo de pesquisa, também iniciou um processo em mim, aí fui me descobrindo como uma pessoa trans. Logo, esse processo se deu quando eu já participava do movimento LGBTQA+. Nesse caminhar, permaneço no Grab, onde passo boa parte da minha juventude, do meu ativismo lá. No decorrer desse processo de formação política, de formação identitária, percebo também que as pautas de identidade de gênero eram algo muito importante na minha vida. Eram demarcadores dos acessos. Logo, também passo a integrar o movimento de ativismo do movimento de travestis e transexuais do Brasil. Então, os movimentos sempre foram muito fundamentais para a formação da minha identidade enquanto sujeito, enquanto sujeito travesti, enquanto sujeito preto. Esse é o meu diferencial, porque vou descobrindo que bandeiras vou defender já dentro do próprio movimento. Não tenho como falar da Dediane sem falar do Grab, sem falar do JC e do movimento de travestis e transexuais. Para mudar os contextos de violência, de discriminação onde estava inserida a população LGBT, inclusive eu e minhas manas, além de jovens pretos, que vinham do sertão, era importantíssimo que essa luta estivesse interligada e unificada.
É TEMPO DE RESISTÊNCIA - Enfrentamos um ano de pandemia, de negação de direitos e de um governo que se retroalimenta do cenário de calamidade. Nesse contexto, o que precisamos destacar no 8M deste ano e de outros que estão por vir? DEIDIANE - No cenário atual, onde a pandemia completou um ano, percebemos que os efeitos mais violentos vão diretamente nas pessoas mais vulneráveis, como a população em situação de rua, travestis e transsexuais, esses que já não têm acesso às políticas públicas ou de transferência de renda. Então, a pandemia vem num processo de potencializar essas vulnerabilidades desses sujeitos. Neste 8 de março atípico, estamos impossibilitados de ocupar as ruas, por causa do contexto pandêmico; logo, não podemos levantar nossas bandeiras e nossos gritos de luta e reivindicação de direitos. Gritar pelo direito à vida, por postos igualitários no mercado de trabalho, pela vida das mulheres negras. Estamos vivenciando um momento difícil no Brasil, onde torcem pelo apagamento de bandeiras, como a do Movimento de Mulheres no Brasil. Mas essa data, acima de tudo, vem para nos fazer refletir e compreender a dimensão do que é “ser mulher”, inclusive nas suas múltiplas identidades.
É TEMPO DE RESISTÊNCIA - Como você avalia a participação de mulheres em movimentos de defesa de direitos e garantias? DEIDIANE - É importantíssimo que a gente se envolva na luta. Sejam as lutas comunitárias, as lutas dos segmentos sociais, como movimento LGBT, de mulheres, movimento negro, pelo direito à moradia e pelo direito à cidade. Acredito que a participação das mulheres é fundamental para transformar essa sociedade. Hoje, mais do que nunca, a nossa participação é fundamental na defesa da democracia, na defesa dos direitos de todas as pessoas e é mais do que nunca da defesa do direito à liberdade; à liberdade dos corpos que são assassinados, que são ceifados, apenas porque não fazem parte de uma grande hegemonia. Quando a gente participa do movimento e levantamos uma bandeira, mostramos qual nosso lado e qual o nosso lugar. Então é importantíssimo que todas nós estejamos de alguma forma envolvidas com essa transformação. Uma transformação de uma sociedade que só vai ser mais justa através da nossa movimentação, através do nosso movimento, através das nossas lutas e de nossos anseios.
É TEMPO DE RESISTÊNCIA - E para as que não estão inseridas, como convidá-las a participar desses movimentos? DEIDIANE - Convidamos cada uma que se sinta descontente, assim como a Dediane lá no início, com seus 16 anos, com esse contexto e que possamos nos organizar de diversas formas para responder a esse autoritarismo e ir contra as tantas violências que vivemos diariamente. Essa onda que é totalmente autoritária com os nossos corpos e com nossos direitos. Precisamos construir a estratégias de responder essas atitudes de um governo criminoso e que se coloca contrário às pautas dos Direitos Humanos e contrário às nossas vidas.