O que falta para o governador do Ceará, Camilo Santana, encarar de maneira estratégica e com a prioridade necessária a questão do Sistema Socioeducativo? O questionamento foi feito pelo deputado estadual Renato Roseno (PSOL) nessa quarta-feira, 3 de fevereiro, durante pronunciamento na Assembleia Legislativa do Estado. O parlamentar repercutiu em plenário os últimos acontecimentos relacionados às unidades de internação de adolescentes acusados de atos infracionais.
Em um só dia, mais duas notícias reveladoras do colapso em que se encontra o Sistema Socioeducativo no Ceará. Peritos do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura constataram, em visitas realizadas em dezembro, irregularidades como superlotação em dormitórios, adolescentes feridos, ausência de encaminhamento para cuidados médicos e despreparo das equipes dos chamados centros educacionais.
Nessa mesma quarta-feira, outra rebelião de adolescentes foi registrada, já a oitava em 2016. Na madrugada, os adolescentes que estavam recolhidos provisoriamente ao Presídio Militar de Aquiraz, na Região Metropolitana de Fortaleza, fizeram um motim durante a transferência para outras unidades.
Ao questionar o governador, o deputado do PSOL listou uma série de fatos ao longo de 2015 que já expôs a gravidade da situação. Um adolescente morreu em uma das rebeliões, após ser atingido à bala; um trabalhador foi ferido, ficando com lesão grave no braço; e o patrimônio público de vários centros já foi destruído durante os motins.
As denúncias sobre o Sistema Socioeducativo do Ceará já trouxeram ao Estado o Conselho Nacional de Justiça, o Conselho Nacional de Direitos Humanos, o Conselho Nacional do Ministério Público, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, além do próprio Mecanismo Nacional de Combate à Tortura e do Comitê de Combate à Tortura. Os problemas também já provocaram a visita às unidades de deputados, do secretário estadual do Trabalho e Desenvolvimento Social, Josbertini Clementino, e do ministro de Direitos Humanos, Pepe Vargas.
Em 2015, duas audiências públicas na Assembleia Legislativa do Estado foram realizadas para discutir o Sistema Socioeducativo cearense. A questão ainda teve como desdobramentos uma medida judicial, uma ação civil pública, um habeas corpus coletivo impetrado pela Defensoria Pública e uma ação de improbidade movida pelo Ministério Público do Estado contra o secretário.
Um comunicado do Sistema Interamericano de Direitos Humanos e, principalmente, a aplicação de medida cautelar contra o Brasil pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos causaram repercussão na imprensa estrangeira e ampliaram a cobertura da imprensa nacional sobre o tema. “Eu quero perguntar ao governador Camilo o que falta para entender aquilo que todos nós já entendemos: há um grave problema de gestão, tem que alterar a gestão de forma imediata, e não é possível continuar, simplesmente de forma retórica, dando respostas retóricas: “Ah, temos um plano de estabilização”. Mas não tem estabilizado”, questionou o deputado Renato Roseno.
Com a aplicação de medida cautelar pelo Sistema Interamericano de Direitos Humanos, o Estado brasileiro é que está sob questionamento, devendo dar a resposta jurídica a esse processo, mas o governador Camilo Santana pode ser responsabilizado, como alertou Renato Roseno ao líder do Governo na Assembleia Legislativa, Evandro Leitão (PDT). "Cabe inclusive responsabilização de sua Excelência, o governador. Repito isso não como um desejo, mas sobretudo como um alerta da necessidade de que isso seja enfrentado, de que haja uma medida emergencial de alteração desse modelo".
Problemas se agravaram em cinco anos
O Sistema Socioeducativo deve responsabilizar os adolescentes em conflito com a lei e cuidar da ressocialização dos internos, mas tem sido objeto de denúncias, as mais severas, principalmente nos últimos cinco anos. “A coisa piorou a um ponto inimaginável. É um sistema que, hoje, é caro e não produz os efeitos que a sociedade espera que ele produza. Ao contrário, ele produz seres humanos mais brutalizados, porque são brutalizados adolescentes, socioeducadores, equipe técnica e familiares”, analisou o deputado estadual Renato Roseno.
Os problemas já são bastante conhecidos, pelo tempo de existência e pelas denúncias reiteradas. “Eu vou utilizar um tom de fala muito ameno, tamanho é o meu cansaço, mas, ao mesmo tempo, para controlar minha indignação diante desta incompetência da Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social no trato dessa questão e que agora envergonha internacionalmente o Brasil”, observou o parlamentar.
Renato Roseno chamou a atenção para o caráter excepcional da medida aplicada ao Brasil pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos. “Raramente, essa comissão edita medidas cautelares, só as edita quando é reconhecida a situação de urgência, de emergência, de ausência, de omissão de resposta do Estado”.
A Organização dos Estados Americanos (OEA) mantém um sistema interamericano de proteção de direitos, que tem uma comissão em Washington, nos Estados Unidos, e uma corte na Costa Rica. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos é o órgão principal e autônomo da OEA, encarregado da promoção e proteção dos direitos humanos no continente americano, criado em 1959. A Corte Interamericana de Direitos Humanos foi instalada em 1979, como uma instituição do sistema interamericano de proteção dos direitos humanos.
“O Brasil recebeu agora, para nossa vergonha internacional, medidas cautelares, por causa do Sistema Socioeducativo do Ceará, sob responsabilidade do Governo do Estado, pela Secretaria do Trabalho e Desenvolvimento Social. Eu quero repetir a gravidade disso: medidas cautelares, portanto emergenciais, de um organismo internacional, de uma comissão internacional, do sistema da Organização dos Estados Americanos”, reforçou o deputado, deixando claro que o Estado brasileiro é que foi notificado e que, agora, tem a obrigação de dar a resposta.
Violência reproduzindo violência
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos notificou oficialmente o governo brasileiro, concedendo as medidas cautelares pedidas pela Associação Nacional dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (Anced), Fórum Permanente das ONGs de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente - Fórum DCA e Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará - Cedeca-Ceará. As violações de direitos humanos denunciadas por tais instituições ganharam ampla repercussão pelo mandato do deputado estadual Renato Roseno.
As constatações dos peritos do Mecanismo Nacional de Combate e Prevenção à Tortura só reforçam a gravidade das denúncias. “Pois qual não é a nossa indignação quando tomamos conhecimento de que, além dessa determinação internacional, o Mecanismo Nacional de Combate à Tortura verifica e constata aquilo que já havíamos dizendo, que já era sabido por todos: que você trancafiar seres humanos durante dias; num espaço que cabem quatro pessoas, você colocar 15 em condições insalubres; você não ter nenhum tipo de atividade laboral, de aprendizagem profissional, nenhuma atividade educativa; isso concorre pra mais violência, violência contra os internos, os trabalhadores, por fim, as famílias e a sociedade, a todos nós. Portanto, é o Estado produzindo violência que vai reproduzir violência”.
Ao afirmar que, mais uma vez, denuncia os problemas e exige soluções do Governo do Estado, o parlamentar do PSOL lamentou que as respostas demorem tanto a acontecer. "Nós estamos nos tornando mais desumanos e brutais na medida que não conseguimos minimamente gestar um sistema".
Os adolescentes devem ser responsabilizados pelos atos infracionais que praticaram, mas a responsabilização deve ter a qualidade necessária para diminuir a violência, não aumentar ódio, sofrimento e dor. "O Estado do Ceará não está sendo capaz de fazer isso, e as repercussões agora sancionam e responsabilizam a União federal e o Estado brasileiro. Eu lamento muito uma manchete como essa. Nos envergonha a todos. Lamento muito que tenha que sair do Brasil para algo acontecer", completou Renato.
Oitava rebelião em pouco mais de um mês
Os adolescentes que estavam internados provisoriamente no Presídio Militar de Aquiraz, na Região Metropolitana de Fortaleza, fizeram um motim na madrugada desta quarta-feira, 3 de fevereiro, durante a transferência para outras unidades. É a oitava rebelião de 2016, enquanto estamos ainda começando o segundo mês do ano. "Sabe qual era a questão? Não havia condições sanitárias. Aquilo ali é insuportável", definiu o deputado estadual Renato Roseno, no plenário da Assembleia Legislativa.
"Quando houve a transferência para o Presídio Militar, nós, lamentavelmente, fizemos o papel de Cassandra, que, na mitologia, dizia que algo mal iria acontecer, mas ninguém lhe deu ouvidos. Portanto, nós não queremos aqui repetir o papel de Cassandra. Nós estamos, sobretudo, denunciando e exigindo que o investimento pago pelo povo do Ceará seja aplicado para produzir dignidade e não para produzir violência", acrescentou o parlamentar do PSOL, referindo-se à transferência de adolescentes, após rebelião, no dia 6 de novembro de 2015, que deixou destruídos os centros educacionais São Francisco e São Miguel.
Renato Roseno aproveitou para questionar a lógica do hiperencarceramento. "Obviamente, nós nos insurgimos contra toda e qualquer lógica de hiperencarceramento. O hiperencarceramento não é uma cultura que deva ser estimulada". E provocou o Judiciário e o Executivo a atuarem conjuntamente pela adoção também de medidas não privativas de liberdade. "As medidas privativas de liberdade estão sendo feitas de maneira a provocar em larga escala tortura por omissão", denunciou.
Advogado, militante de direitos humanos, Renato procurou deixar claro, para os colegas parlamentares e para o público que acompanhava o pronunciamento via Rádio FM Assembleia e TV Assembleia, qual a diferença entre as modalidades de tortura no âmbito do Estado. "Para quem não é do Direito, a tortura tem duas modalidades: a tortura omissiva e a tortura ativa. A tortura omissiva é quando o Estado, que tem a responsabilidade de fazer algo, não faz, viola direitos por omissão: por superlotação, porque não planejou rede, porque não conseguiu garantir direitos básicos - sanitários, de alimentação, de ressocialização... E a tortura ativa, quando seus membros torturam fisicamente, psicologicamente alguém sob custódia do Estado; portanto, é o indivíduo e o Estado que devem ser responsabilizados".
Silenciamento não é pacificação
O deputado estadual Renato Roseno aproveitou o início do pronunciamento sobre o Sistema Socioeducativo do Ceará para repercutir outra questão relativa também aos direitos humanos, à segurança pública e à justiça: como o Governo lida com o crime organizado no Estado. “Há a necessidade de avançarmos no entendimento, na investigação e na responsabilização do crime organizado".
O parlamentar do PSOL contribuiu com o debate provocado, minutos antes, pelo deputado Capitão Wagner (PP), sobre a instalação das organizações criminosas Comando Vermelho e PCC em Fortaleza. De acordo com o que tem circulado nas redes sociais e em veículos de imprensa locais, esses grupos querem afastar a presença policial de determinados bairros e "pacificar as comunidades carentes", apontou Capitão Wagner.
"Esse possível acordo que setores do crime organizado estariam impondo a determinados territórios da cidade, na verdade, não é pacificação, é silenciamento. Eu me recuso a chamar isso de pacificação. Paz é outra coisa, paz é fruto da justiça, não é fruto do silêncio e do medo. Ela não pode ser fruto do acordo de setores que impõem aos territórios o silenciamento e o medo”, analisou o deputado Renato Roseno.
Deputado da Frente de Esquerda, formada também pelo PCB e pelo PSTU, ele considera absolutamente fundamental que o Estado possa resguardar cidadãos e cidadãs que moram nesses territórios, para que não sejam reféns do crime organizado. “Estamos, lamentavelmente, colhendo a ausência de uma estrutura investigativa que permita a responsabilização, sem dúvida alguma”, concluiu.