Há exatos duzentos anos, no dia cinco de março de 1818, nascia Karl Marx, o pensador laico de maior ascendência na história humana. Suas ideias influenciam decisivamente o curso do mundo desde a segunda metade do século XIX. E, postas na balança, não há razões para pensar que não seguirão ainda influenciando.
Mas Marx pode ser considerado atual depois da derrocada do “socialismo real”, isto é, dos regimes que no século XX (e alguns que ainda sobrevivem) afirmaram inspirar-se em suas ideias?
Não se trata de um paradoxo. Quem atesta a falência do marxismo a partir da crise dos resultados desses regimes, ignora as enormes diferenças existentes entre o pensamento de Marx e a ação de partidos e líderes políticos que pretenderam encarná-lo praticamente. Como se sabe, o próprio Marx já havia alertado para essas diferenças, ao declarar, no final da vida, simplesmente não ser “marxista”.
Na verdade, os descaminhos imputados às experiências que reivindicaram Marx talvez forneçam os mais importantes argumentos a favor de sua atualidade. Pois nenhum pensador moderno conseguir produzir um conjunto de críticas capazes de desvelar a essência desumanizadora das relações sociais ancoradas nas formas mercantis e na acumulação de riqueza abstrata (valor) gerada a partir da subordinação e exploração da força de trabalho aos interesses do lucro, bem como demonstrar o caráter falso e ilusório do Estado e da burocracia como lugares da realização da verdadeira comunidade humana. Uma crítica tão profunda e devastadora que, quando bem observada, parece dirigir-se antecipadamente ao que foram os regimes totalitários que, ao olhar de milhões, macularam a legitimidade da perspectiva socialista.
Mais ainda: nenhum pensador foi tão longe na crítica aos fundamentos do capitalismo, tendo conseguido apreender os fenômenos de seu tempo e antecipado muitos dos que caracterizam a sociedade contemporânea. Alienação, fetichismo, exploração, monopolização, globalização, crises de realização, acumulação e valorização, desemprego tecnológico, metabolismo sociedade-natureza, são algumas das categorias analíticas que ganharam contornos e consistência a partir de sua obra. Por isso, nenhuma mirada crítica sobre as sociedades contemporâneas pode prescindir do recurso ao pensamento de Marx.
É claro que isso não faz de Marx um profeta infalível. Mas o coloca no lugar que lhe cabe como o crítico “impiedoso e implacável de tudo o que existe”, como ele mesmo definiu a tarefa da teoria. Olhando desse ângulo, o da crítica impiedosa e implacável da realidade contemporânea, não pode restar dúvida de que Marx sobrevive e vive no segundo centenário de seu nascimento.
Dele, ainda podemos dizer, copiando Sartre, que suas ideias seguem sendo a “filosofia insuperável de nosso tempo, dado que as circunstâncias que a engendraram não foram ainda superadas”. Superar essas circunstâncias, isto é, as várias desigualdades ancoradas no domínio do lucro sobre a vida, na exploração de classe, no machismo, racismo, homofobia e predação da natureza, é nada mais que afirmar o programa fundamental de Marx: interpretar o mundo com a finalidade de transformá-lo. (Texto: Afrânio Castelo)