Ser mãe é ocupar um lugar de luta. É se doar para ser caminho, afeto e cuidado na vida de outra pessoa. É, por vezes, ter de reivindicar sobre a desconstrução da ideia da “mulher guerreira”, pois há dias em que a luta não é alternativa, mas a única chance de sobrevivência.
Como leoas na linha de frente, estas mulheres travam lutas incessantes com forças inimagináveis para conseguir justiça por seus filhos e pelo direito deles de existir. Reúnem potências e, em sua maioria, encontram no coletivo uma fonte de força para persistirem nesses entraves, apesar da exaustão que insiste em surgir.
Essa é a realidade de Edna Carla, 49, Yandra Lôbo, 35, e Alessandra Félix, 33. Mães à frente de diferentes lutas, elas existem e resistem em busca do direito à vida, à justiça e à democracia.
“A morte do meu filho inspirou minha luta”
Edna Carla, uma das líderes do grupo de apoio “Mães do Curió”, se tornou um símbolo. Desde a morte de seu filho Alef Souza Cavalcante, assassinado na noite do dia 11 de novembro de 2015 no fato que ficou conhecido como “Chacina da Curió”, ela vem travando uma luta contra o Estado para conseguir justiça e tem atuado para alertar sobre a morte de jovens nas periferias da Capital.
“Negaram a vida do meu filho e foi uma das piores crueldades que já vivi na minha vida. Me tiraram o direito de receber um abraço do meu filho no Dia das Mães. E é isso, você não tem mais escapatória: você vive pela luta. Você luta quando acorda, luta quando não tem forças para sequer se levantar, você luta para mantê-los vivos e permanece lutando após a sua morte precoce”, destaca. O adolescente de 17 anos foi uma das 11 pessoas executadas por policiais militares, segundo denúncia do Ministério Público Estadual.
Alef completaria 23 anos este ano e a mãe relembra seu sonho de se alistar no Exército. Neto de policial militar, foi impedido de seguir com a carreira por aqueles que poderiam servir de inspiração. “Vivi períodos sombrios de desespero em buscas por respostas, mas foi um ano depois, em 2016, que decidi reunir as minhas forças para lutar por ele e pelos familiares de outras vítimas”.
O coletivo Mães da Periferia de Vítima Por Violência Policial do Estado do Ceará, que Edna também integra, realizou uma ação com mães que perderam filhos para a violência policial neste domingo, 09, data em que comemora-se o Dia das Mães. Foram entregues "kits de beleza" para as mulheres, com itens de cuidado pessoal. O “Mães do Curió” é composto por mulheres que encontraram alento na mesma dor. Elas integram o coletivo em busca de amparo e justiça para os filhos. Todos os dias.
“O que me faz ser uma mãe de luta é a falta de opção: sem lutar o meu filho não teria sequer o direito de existir”
A fotógrafa Yandra Lôbo tem uma força na fala. Dessas que carregam significados e trajetórias compostas de desafios, vitórias e, por vezes, exaustão. Integrante do “Mães pela Diversidade”, ela se uniu ao grupo quando o filho, Raul Malu, começou a mostrar traços de transexualidade. A busca pela pauta LGBTQA+ se deu numa perspectiva de cuidado e apoio, especialmente quando vivenciou a transição das identidades de gênero da criança.
Compreender, no entanto, que os filhos não são uma projeção e extensão de si mesmo é imprescindível para enfrentar a situação de forma mais fluida. “Os nossos filhos não são continuações de nossas histórias, isso é uma ilusão cultivada que gera muitas decepções e frustrações que poderiam ser evitadas. É muito difícil ter um filho que não corresponde às expectativas que a gente cultiva enquanto sociedade, e essas expectativas que são silenciosamente partilhadas, estão ligadas à heterossexualidade e à cisgeneridade”, reforça.
Para a realidade de Yandra e de sua família, enfrentar a trajetória de desafios que surgem não é alternativa, mas necessidade. É um percurso de resistência diária em uma luta travada contra as negações de direitos e a invisibilização. “Sem lutar o meu filho não teria saúde, não teria espaço, não teria compreensão; não teria esse nicho de segurança que nós conseguimos construir até hoje. Não houve um dia, desde os seus quatro anos quando começou a se identificar pela transição do gênero, ou pelo menos comunicar a sua identificação, em que eu não precisasse estar mais atenta, mais cuidadosa e mais dedicada à sua segurança e ao seu bem-estar”, desabafa.
A ONG “Mães pela Diversidade” é formada por mães e pais de pessoas lésbicas, gays, trans, bissexuais e travestis. Integrar o movimento há pouco mais de um ano foi importante para Yandra fortalecer a rede com outras mães que vivenciam o mesmo processo. “Nós precisamos construir pontes e alternativas porque acredito que tem muito mais gente massa do que gente paia nesse mundo, e que o amor, e que nossas histórias tem o poder imenso de mudar a maneira como algumas pessoas enxergam a diversidade, a diferença, sabe? Eu acredito realmente que nós precisamos contar nossas histórias e que isso muda o mundo”. A luta segue mudando o mundo.
“Nós, as mães das periferias, duelamos para manter os nossos filhos vivos ou fora das grades”
Os embates enfrentados no “ser mãe” permeiam diferentes realidades. Para a professora Alessandra Félix Xavier esse cenário veio a partir da experiência em ver o filho inserido em contextos conflituosos com a lei Integrante do movimento Vozes de Mães e Familiares do Socioeducativo e Prisional do Ceará, ela acompanhou as passagens de seu filho Israel em centros socioeducativos e no sistema prisional. Dos 14 aos 18 anos, o jovem passou por diversos centros socioeducativos. Aos 20, foi colocado no sistema prisional.
“Na minha condição de mãe negra, mãe de adolescente ou adultos privados de liberdade, eu costumo que não sou uma mãe convencional, mas uma mãe institucional. Enquanto mães convencionais, em outra condição social, se preocupam com o bem-estar ou com as notas vermelhas que seus filhos venham a ter em reprovações na escola, nós, as mães das periferias, duelamos para manter os nossos vivos ou fora das grades”, reivindica.
Alessandra vê a pedagogia social como um braço forte e necessário na trajetória enfrentada contra o Estado. “Tive o grande privilégio de concluir a faculdade em Pedagogia, ao qual me oportunizou caminhos. Ter tido o acesso à informação e ao conhecimento das leis, especialmente enquanto vivenciava as violações do Estado em relação ao meu filho, me fez querer ajudar e ouvir tantas outras mães que também viviam aquela dor agonizante junto a mim. E isso me encorajou e fortaleceu, ainda mais”, relembra.
No cenário do sistema prisional, essas mulheres são taxadas como “mães de preso”. Alessandra, no entanto, questiona e revisita o termo de forma dolorosa. “A sociedade pode achar que meu filho tem de morrer, mas eu luto para que ele sobreviva, para que ele tenha acesso e para que o Estado não determine seu futuro. Eu não sou mãe de preso. Sou professora, pedagoga, ativista e mãe do Israel”, se orgulha.