Um retrocesso de pelo menos 50 anos nas políticas de regularização fundiária do campo e da cidade, com graves repercussões nas lutas por moradia e por terra. Essa foi a avaliação unânime feita por advogados, urbanistas, arquitetos e lideranças de movimentos sociais durante a audiência pública realizada na tarde da última segunda-feira no complexo de comissões da Assembleia Legislativa. A audiência foi requerida pelo deputado estadual Renato Roseno (PSOL) e discutiu os impactos da Medida Provisória (MP) 759, que altera as regras de regularização fundiária.
"O retrocesso é muito grande. Estamos voltando ao tempo em que apenas a entrega do título de propriedade supostamente resolvia o problema da moradia. Na verdade, regularização fundiária é um processo mais amplo, implica em oferecer saneamento básico, transporte e todo um conjunto de serviços essenciais em favelas, cortiços, ocupações, palafitas, porque isso é que vai garantir a permanência dos moradores com segurança da posse, prevenir conflitos, etc", defendeu a advogada e professora Ligia Melo, do Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU).
Para Lígia, a regularização plena sempre foi a luta das entidades ligadas ao Direito Urbanístico. "Isso significa saneamento, água, esgoto, ônibus. Não adianta o título somente se eu não moro bem, se não tenho como trabalhar. A legislação dizia que a regularização era plena. Agora, será somente de título. Isso vai facilitar apenas para o mercado", avaliou.
Nacionalmente, diversos movimentos sociais e entidades de direitos humanos, como o MST, Fórum Nacional de Reforma Urbana, Instituto Pólis e o Instituto Brasileiro de Direito Urbanístico (IBDU) articularam uma frente ampla contra a MP. No Ceará, o Laboratório de Estudos da Habitação (Lehab-UFC) e a Frente de Luta por Moradia, composta por movimentos sociais, comunidades populares e entidades da sociedade civil, também estão participando da frente, que já conta com assinaturas de mais de 100 coletivos.
Casa como mercadoria - Uma das principais críticas dessas entidades é que a MP desconstrói a legislação recente sobre regras de regularização fundiária e está preocupada apenas em transformar a terra e a moradia em mercadorias, que não resolvem o déficit por moradia e servem apenas aos interesses do capital. "O que essa MP faz é desobrigar o poder público de políticas efetivas. Ele agora vai poder dizer que regularizou determinadas moradias apenas ao dar o papel da casa. Ou seja, essa MP entende a casa como uma mercadoria, que vai virar uma garantia de um empréstimo", defendeu a professora Clarissa Freitas, do curso de Urbanismo da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Em Fortaleza, são cerca de 1 milhão de pessoas vivendo em situação fundiária irregular, segundo dados apresentados pelo professor Renato Pequeno, também da UFC. Segundo o acadêmico, a MP 759 impacta de modo significativo essas populações porque surge em um contexto de grande fragilidade institucional na cidade. "Essa MP não veio de um processo democrático. Isso é muito grave. Porque é uma medida que desmonta toda a política nacional de regularização fundiária e nasce sem discussão com a população, com movimentos sociais, com as universidades, etc", afirmou. Para o professor, são raros os espaços de diálogo em torno da nossa política urbana. "Nossa situação em termos institucionais é muito precária em Fortaleza. Quando olhamos para a Habitafor, por exemplo, vemos que é um aparato institucional mínimo e que vem sendo esvaziado nos últimos anos".
IMPACTOS NO CAMPO - Representando o Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST), Antonia Ivoneide, a Neném, alertou que a MP vem atender os interesses e reclamações do agronegócio, em detrimento da reforma agrária. "É, na verdade, uma contrarreforma agrária", classificou. "Não há uma discussão sobre o processo emancipatório dos assentamentos, não contempla mais o processo de organização da produção, de infraestrutura de estradas, saneamento, etc. Titulação sem estrutura, na prática, é pra vender a terra. As famílias ficam desamparadas, fragilizadas e vendem mais facilmente as terras. O trabalhador vai virar um pequeno proprietário isolado", defendeu.
O orçamento do Incra para 2017, lembrou Neném, ficou em torno de R$ 90 milhões. "Esse valor mal compra uma fazenda no Sul do País", comparou. "O que o governo quer, na verdade, é destruir os movimentos de luta por moradia e por reforma agrária. Não queremos propriedade privada da terra, queremos a posse da terra para trabalhar e viver com dignidade. Para produzir alimentos saudáveis, sem veneno e sem adubo químico. E sem exploração do homem sobre a mulher, sem machismo, sem patriarcado", defendeu.
DEFENSORIA E MINISTÉRIO PÚBLICO - Também participaram da audiência representantes do Ministério Público Estadual, da Defensoria Pública Estadual e da Defensoria Pública Federal (DPF), além de representantes de diversos movimentos por moradia e comunidades em processo de regularização fundiária em Fortaleza. Para Lídia Nóbrega, da DPF, a instituição teme que essa MP amplie os conflitos fundiários, tanto no campo quanto na cidade. "Essa MP, ao mesmo tempo em que facilita a regularização por grandes particulares e ocupantes irregulares em assentamentos, dificulta a situação das comunidades mais pobres e a luta dos que realmente precisam de acesso à moradia e à terra".
Segundo Jaqueline Faustino, do Ministério Público Estadual, é difícil enxergar algo de positivo nesse novo diploma proposto pelo governo Temer. "O ponto principal é uma grande confusão entre o direito à moradia e o direito à propriedade privada. O que todos estão buscando é moradia. O que a MP traz é o direito à propriedade privada", diferenciou. Para a promotora, a proposta trata-se de uma "pegadinha" para enganar aqueles que acham que, apenas com o papel de propriedade, o problema da falta de moradia estará resolvido. Jaqueline informou que uma nota técnica do MP está sendo produzida para embasar a posição da instituição e definir quais estratégias jurídicas poderão ser adotadas.
No encerramento da audiência, Renato Roseno, que presidiu a mesa, pactuou com os presentes que será criado um grupo de trabalho para levantar e disseminar mais informações sobre o tema. "A Associação Nacional dos Defensores Públicos (Anadep) está lançando uma nota técnica, há também manifestações do Colégio Nacional de Procuradores e outras entidades, bem como estudos do MST. Nossa ideia, então, é compilar todo esse conhecimento e colocar à disposição da população", explicou Renato, que também informou que o grupo irá estudar saídas jurídicas para questionar a MP.