O ambiente virtual cresceu com a pandemia, por necessidade e para suprir distanciamentos físicos, mas se tornou um ambiente de risco para a saúde mental, especialmente para crianças e adolescentes. O tema foi discutido nesta quinta-feira (17/09), durante o evento “Real e Virtual: redes sociais e prevenção do suicídio na infância e na juventude”, promovido pelo Programa Vidas Preservadas, do Ministério Público do Estado do Ceará (MPCE), e transmitido no canal da instituição no YouTube. A atividade marcou o lançamento da campanha Setembro Amarelo 2021, desenvolvida pelo MPCE.
O momento, na visão do promotor de Justiça Hugo Porto, coordenador do Programa Vidas Preservadas, é de entender qual a prioridade das sociedades brasileira e cearense na prevenção de mortes evitáveis. Para ele, nesse sentido, o Vidas Preservadas tem cumprido sua missão de ser horizonte, farol e visibilizar ações e políticas públicas através do diálogo, espaços de conciliação, mediação e com oitiva qualificada. “Esse é nosso 4º Setembro Amarelo, mas a preocupação antecede 2018. Hoje 124 municípios aderiram ao programa. Mas é importante falar em recursos, em agenda prioritária e em criar e consolidar uma grande de rede de proteção e preservação da vida”, considerou.
Hugo Porto lembrou alertou ainda que o ciberespaço representa mais um desafio a ser transposto, com o fortalecimento de uma rede multissetorial de atendimento. “A pandemia transformou a forma como trabalhamos, nos relacionamos e vivemos. Interagimos com pessoas desconhecidas, recebemos diariamente notícias verdadeiras e falsas. Quando falamos de crianças e adolescentes, essa situação toma outra proporção. Ainda que as tecnologias tragam benefícios, trazem desafios. Cyberbuylling, deslikes, cancelamentos e haters são uma realidade que trazem desdobramentos na saúde mental e na ocorrência de suicídios e automutilação. Precisamos sair da desesperança, desespero, desalento. Empatia, esperança, energia positiva esforços comuns e plurais e efetividade das políticas públicas”.
De acordo com o procurador-geral de Justiça, Manuel Pinheiro, o cenário exige a continuidade de ações pensadas e executadas pelo Vidas Preservadas, com envolvimentos dos Centro de Apoio Operacional da Saúde (Caosaúde), da Educação (Caoeduc) e da Infância e da Juventude (Caopij). “É necessário trazer para o debate especialistas do campo teórico e prático. O tempo tem mostrado que o envolvimento de pessoas de diferentes instituições pensando medidas efetivas, é uma ferramenta capaz de poupar vidas. O tema é delicado, envolve direitos fundamentais, liberdade de pensamentos, mas precisa ser discutido na dimensão da autorregulação, controle e responsabilidade de empresas que administram as plataformas de redes sociais”, pontuou.
Através do chat da plataforma, participaram professores, psicólogos, assistentes sociais e gestores de diversos municípios do Ceará, bem como dos estados de São Paulo e do Pará. Na ocasião, os participantes expuseram a necessidade de melhorias no atendimento, sobre como identificar problemas entre crianças e adolescentes e como melhorar o atendimento na rede de saúde dos municípios. De acordo com a representante da Associação para o Desenvolvimento dos Municípios do Ceará (ADMCE), Suellen Pinheiro, que tem articulado o Vidas Preservadas no interior, além dos 124 municípios que já aderiram ao programa, 52 já finalizaram seus Planos Municipais de Prevenção ao Suicídio, 72 estão em processo de conclusão e outros 3 já transformaram o plano em leis municipais. No próximo dia 24 de setembro, todos os planos serão finalizados.
Para o deputado estadual Renato Roseno, presidente da Comissão de Direitos Humanos Cidadania da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará, temas urgentes devem ser abordados, como a necessidade de transparência algorítmica, a toxicidade do uso intenso das redes sociais e a monetização das plataformas. Na visão do deputado, isso deve ser feito em interface com a universidade e instituições públicas. “A internet é um serviço essencial, precisa ser muito bem regulado para não ser fonte de sofrimento e de dor, principalmente entre nossos adolescentes”. A deputada Érika Amorim, presidente da Frente Parlamentar em Defesa da Saúde Mental e Combate à Depressão e ao Suicídio da Assembleia, considerou que os diálogos precisam ser ampliados, com a finalidade de fortalecer a rede, estabelecer orçamento e buscar alternativas para promover mais espaços de escuta e atenção especializada.
Também participaram do seminário os promotores de Justiça Eneas Romero de Vasconcelos, coordenador do Caosaúde; Lucy Antoneli, coordenadora do Núcleo Estadual de Gênero Pró-Mulher (Nuprom); e a procuradora de Justiça Elizabeth Almeida, coordenadora do Caoeduc; O seminário é uma realização do MPCE, por intermédio do Caopij, Caocidadania, Centro de Apoio Operacional de Proteção à Ecologia, Meio Ambiente, Urbanismo, Paisagismo e Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural (Caomace), Centro Operacional Criminal (Caocrim), Caoeduc, Caosaúde e das Promotorias de Justiça de Defesa da Saúde Pública, com o apoio da Ouvidoria Geral do Ministério Público, do Centro de Estudos e Aperfeiçoamento Funcional (CEAF) e da Escola Superior do Ministério Público (ESMP), em parceria com instituições públicas e privadas.
De acordo com o promotor de Justiça Eneas Romero, a saúde como um todo precisa ser repensada sob novas abordagens. “Toda morte evitável é lamentável. O efeito de uma morte de suicídio só sabe quem vivem na família ou quem acompanha esses pacientes e as famílias. O que fazer com esse sentimento é um desafio para a família, para os amigos e para a rede de saúde. Nós vivemos uma crise sanitária e de solidariedade. Poderíamos ter apreendido a ter soluções conjuntas, mas muitos se isolaram. A ciência nunca se mostrou tão necessária e efetiva. Só estamos superando a crise, em parte, graças à ciência e à vacina, que é uma invenção humana, é uma criação. Foi sobretudo o esforço coletivo dos cientistas e dos sistemas públicos de saúde. Há caminhos possíveis, sim, mas só é possível encontrar a si mesmo se houver solidariedade para entender e respeitar o sofrimento de cada pessoa”, frisou.
Palestras - O seminário contou com duas palestrantes convidadas, a psicanalista Fabiana Vasconcelos, responsável pelo desenvolvimento das metodologias de Educação e Prevenção do Instituto DimiCuida e a professora e fundadora do curso de Psicologia da Universidade Estadual do Ceará (UECE), Alessandra Xavier, autora de livros e artigos sobre desenvolvimento humano, psicanálise, psicoterapia e suicídio.
Segundo a psicanalista Fabiana Vasconcelos, não se pode analisar o cenário atual dissociado da pandemia. Isso porque o contexto restringiu grupamentos externos e potencializou os usos das tecnologias, com lives de música, aulas, jogos, videochamadas e trabalhos executados no ambiente virtual. “Essa imersão estimulou a propagação de páginas que estimulam o comportamento suicida, aliciamento, assédio sexual, pedofilia. As práticas já existiam há muito tempo, mas hoje estamos em uma outra dimensão de relacionamento social e com as redes. Não é só a escola, o prédio, a vizinhança, a pracinha. São campos abertos da Internet, canais com fins financeiros, um deles tem 10 milhões de seguidores e outro com 6 milhões de seguidores”, detalhou.
Segundo pesquisa TIC Kids Online Brasil, que acontece anualmente no país entre o público de 9 a 17 anos, 98% dos acessos de Internet são feitos por smartphone. Além disso, há 24,3 milhões de usuários de Internet no país, sendo que 46% estão conectados com brincadeiras perigosas e desafios. Ainda conforme o levantamento, as redes sociais mais utilizadas pelos brasileiros são, nessa ordem, o Facebook, WhatsApp, YouTube e Instagram.
“Estamos investigando a profundidade do uso de telas. O risco começa nas creches, com criança de 1 a 3 anos, com aparente autismo, dificuldade de aceitar frustração, de se comunicar. No processo de investigação, precisamos considerar a exposição às telas, pois há risco, compromete o desenvolvimento neurológico, a capacidade de se sentir indivíduo no grupo, causa extrema irritabilidade e torna a capacidade de concentração e cognição inapropriadas para a idade”, explicou a Fabiana Vasconcelos.
Para a professora universitária Alessandra Xavier, o ambiente virtual pode ser esse espaço de conexões, saberes e experiências, onde se pode aprender acerca de limites e tensões. “É preciso entender como a Internet oferece espaço para que eu me conecte saudavelmente com as diferenças, para construir matrizes de identificação acessando outros grupos de identificação, mas também é espaço para pedofilia, condutas haters, bullying. Lidar com essa dualidade exige desenvolvimento emocional extremamente profundo. A configuração do mundo virtual é complexa, precisa ter cuidado na construção com a sua alteridade, em detrimento do sujeito inebriado com sua própria imagem. Precisamos trabalhar adolescentes em espaços onde existam enquanto sujeitos”, afirmou.
Incidência - Em Fortaleza, a situação preocupa autoridades públicas. Segundo dados da Secretaria Municipal da Saúde (SMS), em 2020, foram registrados 75 óbitos por suicídio. Em 2021, até o mês de julho, foram 38. Ainda conforme a Secretaria, no ano passado, 1.194 pessoas tentaram suicídio e praticaram automutilação. Neste ano, são 621 casos, sendo que 209 aconteceram no público de 10 a 19 anos e 10 casos entre crianças com até 9 anos de idade.
“Uma tentativa de suicídio afeta de 10 a 15 pessoas ao redor da vítima. Se o suicídio for concluído, outras pessoas que não acompanham diretamente a vítima, mas que têm potencial, também são induzidas. Há ainda os casos que não entram nas estatísticas de suicídio, como o atropelamento provocado. Esse é o suicídio silencioso, tão perigoso quanto o registrado”, analisou o psiquiatra Arildo Sousa de Lima, coordenador da Célula de Saúde Mental de Fortaleza.
De acordo com o psiquiatra e coordenador da Coordenadoria de Políticas de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas (Copom) da Secretaria da Saúde do Estado do Ceará (Sesa), Davi Queiroz, estudos revelam que a dependência das redes sociais aponta semelhanças com a dependência química. “Do ponto de vista médico, não é uma droga, mas, do ponto de vista adicto, precisa de uma regulação e de atendimento específico”, alertou. (Texto e foto: ASCOM - MPCE)