O que foi feito do Ceará nos últimos 30 anos? Como o chamado "mundancismo", que começa com a posse de Tasso Jereissati em 1987 e cuja lógica política e econômica vai marcar as gestões de todos os seus sucessores, incluindo o atual governador, Camilo Santana (PT), alterou o panorama do nosso estado? O projeto político que se reinvindicava modernizador, que faria o Ceará finalmente superar seu secular atraso social e econômico e as tradicionais práticas políticas do chamado “coronelismo”, conseguiu efetivamente alcançar esse objetivos? Ou terminou por aprofundar nossas contradições bem como o abismo econômico que ainda separa ricos e pobres em nosso estado?
Para discutir essas e outras questões, o mandato É Tempo de Resistência promoveu na última sexta-feira, 1, a primeira etapa do ciclo de debates "30 anos do mundancismo - modernização conservadora em debate". A ideia é propor esse diálogo e essa reflexão com diversos setores da sociedade cearense ao longo de encontros que, nos próximos meses, também serão realizados no Interior. "Queremos fazer um balanço crítico do autointitulado 'mudancismo', fazendo também um resgate histórico pra que possamos pensar as relações políticas e econômicas estabelecidas pelo grupo que chegou ao poder com Tasso Jereissati, em 1987. E também discutir o saldo desse período em termos de políticas setoriais, como recursos hídricos, agricultura, segurança, etc", explicou Renato Roseno na abertura do evento.
Para o deputado, a geração de empresários que surgiu nos anos 80 propôs uma "modernização" das práticas políticas e econômicas no Estado. Com a chegada de Tasso ao governo, essas medidas começam a ser implementadas, do arrocho fiscal às políticas de atração de empresas e indústrias, mas sempre com um alto custo social e ambiental. "Na nossa avaliação, há traços de continuidade dessa geração ao longo dos últimos governos, de 1986 até os dias atuais", defende.
MANDONISMO - A primeira mesa do seminário tratou do "Surgimento do mudancismo: a 'revolução burguesa' no Ceará". Em pauta, o contexto histórico do mudancismo e suas forças políticas em contraposição à política dos coroneis. Participam do debate o historiador e professor Roberto Araújo, do IFCE; e a professora socióloga Linda Gondim, da UFC. "Ao longo dos últimos 30 anos, houve a tal 'modernização', mas de consequências perversas porque não alterou a distribuição da renda. Nos últimos anos, a redistribuição de renda melhorou mas em função de políticas nacionais, como o bolsa família, o aumento do salário mínimo, etc", afirmou Linda Gondim.
Para o professor Roberto Araújo, o Ceará tem algumas particularidades históricas que não podem ser desconsideradas quando da análise de seus ciclos políticos. Uma dessas características foi a colonização trardia em relação ao restante do Nordeste, e que também se deu em sentido inverso. Enquanto em estados como Pernambuco e na Bahia, ela foi do litoral para o sertão, no Ceará, ela faz o caminho contrário, indo do sertão para o litoral. "Se o Brasil é um país do capitalismo tardio, periférico, o Ceará, dentro do Brasil, vai ter essas carcateristicas", defendeu. "E isso ajudou a criar uma marca própria nas nossas relações sociais, que era não apenas o coronelismo, mas também o do mundanismo, uma cultura política autoritária, vocalista e fragmentada".
Segundo o professor, o grupo empresarial articulado dentro do CIC, do qual emergiu a figura de Tasso Jereissati como principal líder, conseguiu agregar essa elite tradicional, o que não se conseguia até então. Esse grupo, para Roberto, chegou ao poder apresentando um discurso de modernidade que era, na verdade, muito mais uma estratégia de marketing do que efetivamente um conjunto de novas práticas políticas. "Foi a época em que o Ceará foi vendido, para o Brasil e para o mundo, como um paraíso nos trópicos. E isso impedia a discussão sobre o alto custo social dos projetos implementados", afirmou. "A lógica de gestão de Tasso era justamente o da não-escuta, da imposição, da decisão centralizada, do mandonismo".
MOVIMENTOS SOCIAIS - A segunda mesa discutiu a relação entre os movimentos sociais e o mudancismo, desde Tasso até o governo Camilo Santana. O professor de Direito Ambiental e ex-deputado federal João Alfredo; o sindicalista Cesário Macedo, do Sindicato dos Eletricitários; e a professora Elda Maciel, da Faculdade de Educação de Crateús, participaram do debate.
Para João Alfredo, o mudancismo sempre foi muito moderno do ponto de vista tecnológico mas muito arcaico em relação ao custo ambiental e social de suas práticas. Em 30 anos de ciclo mudancista, o Estado ainda não conseguiu superar problemas do século XIX, como o saneamento ambiental. Ao mesmo tempo, promoveu um ajuste fiscal à base do arrocho salarial e do sacrifício do funcionalismo. "Foi um movimento que teve muita força, tanto que Lúcio, Cid e Camilo também se filiaram à sua cartilha. O Maia Júnior, atual secretário de planejamento e responsável pelo pacote de privatizações do atual governo estadual, é um dos pontos de encontro entre Tasso e Camilo", avaliou João. "Foram governos marcados pela lógica neoliberal e pela forte influência do Banco Mundial, desde Tasso e Ciro", reforçou a professora Elda Maciel.
Cesário Macedo fez um balanço das privatizações promovidas nos governos do ciclo mudancistas. Para ele, os custos financeiro e social foram "altíssimos" para a população cearense, em particular para os servidores, que passaram por grandes dificuldades durante as gestões de Tasso. Além disso, o dinheiro levantado com as privatizações não se reverteu em melhores serviços públicos para a população. "Onde está o dinheiro da privatização da Coelce?", questionou.
ECONOMIA - À tarde, foi a vez do debate sobre o projeto econômico do mudancismo, com os professores José Meneleu, do Departamento de Geografia da UECE; e Raquel Rigotto, do Departamento de Saúde Comunitária e do Núcleo Tramas, da UFC. Em pauta, as prioridades do modelo de desenvolvimento adotado no Ceará com a emergência do chamado “Governo das Mudanças”, suas realizações e contradições.
"Nas últimas décadas, o Ceará se tornou uma máquina eficiente de arrecadação e de geração de poupança própria para criar infraestrutura e fomentar investimentos. Essa foi uma grande marca dos governos chamados 'mudancistas', a racionalização da gestão pública, muitas vezes feita com enxugamento da máquina, em particular em setores ligados a políticas sociais", defendeu Meneleu. "O resultado social é que foi o grande problema, sempre com indicadores pífios e em alguns casos com indicadores piorados".
Para a professora Raquel Rigotto, a relação dos grandes empreendimentos, marca dos governos 'mudancistas' com a saúde não se restringe apenas aos riscos específicos do uso de determinados produtos, caso do urânio na mineração ou dos agrotóxicos no agronegócio. "É um processo muito mais profundo de desterritorialização, de destruição de modos de vida, de ameaça à segurança alimentar, de destruição dos ecossistemas que dão sustentação a esses modos de vida", defendeu. "É também a modificação das relações sociais, das formas de organização da produção, que vão estar ligados à violência, à exploração sexual, ao sofrimento psíquico. Há um leque de agravos a saúde decorrentes desse modelo". (Foto: Lucas Moreira)
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