O impacto causado pelo aumento no volume das águas doces do Rio Jaguaribe às mulheres pescadoras do litoral cearense foi tema de audiência pública, realizada na última quarta-feira (08), pela Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Ceará (CDHC/Alece). As marisqueiras, em especial, estão sofrendo com a queda crustáceos e moluscos disponíveis para captura.
O debate, requerido pelos deputados estaduais Renato Roseno (Psol) e Guilherme Bismarck (PDT), abordou a execução do Plano de Apoio às Mulheres Pescadoras/Marisqueiras das Comunidades Pesqueiras dos Municípios de Fortim e Aracati. O encontro ainda contou com representantes de Paracuru, no Litoral Oeste. Todas elas vêm sofrendo sem apoio e outra fonte de renda, pois não são contempladas por políticas públicas, como o Seguro Defeso.
A problemática vem sendo acompanhada pelo deputado Renato Roseno, que realizou uma primeira audiência pública em agosto do ano passado. Como um dos encaminhamentos deste primeiro encontro, Roseno apresentou o projeto de lei 1221/2023, que quer reconhecer e garantir os direitos das mulheres pescadoras do Ceará, a partir da criação da Política Estadual de Desenvolvimento Socioambiental Sustentável das Atividades das Mulheres Pescadoras no Ceará.
A lei pode levar as marisqueiras à proteção social, ao pleno acesso aos direitos trabalhistas e previdenciários; ao acesso à informação sobre estes direitos; ao reconhecimento pelo INSS das doenças ocupacionais das mulheres na pesca e mariscagem; e à desburocratização do registro profissional, com a emissão do Registro Geral da Atividade Pesqueira (RGP).
“No Ceará, milhares de famílias dependem da pesca artesanal. Conta-se cerca de 50 mil famílias diretamente envolvidas na atividade. Nisso, há uma parcela gigante de mulheres pescadoras, que não têm os mesmos direitos dos homens pescadores”, lembrou Roseno, que reforçou que realizou reuniões com a Secretaria de Pesca e Aquicultura do Ceará e iniciou os diálogos com as secretarias de Proteção Social e Meio Ambiente.
A pescadora Cleomar Ribeiro, da comunidade do Cumbe, em Aracati, lembrou que a luta das marisqueiras é antiga, desde 1995, mas se tornou mais articulada a partir do derramamento de óleo, em 2019. Saindo desse processo, elas sofreram em seguida com a pandemia e, mais recentemente, com a cheia do Jaguaribe. “É desafiante. Estamos vivendo sob grande desequilíbrio, o manguezal, o Rio Jaguaribe importantíssimo pra gente. Estamos num processo desafiador, adoecedor, uma luta diária. Não é fácil”.
Cenário preocupante
O debate voltou à tona a partir do aumento brusco no volume das águas do Rio Jaguaribe, durante a atual quadra chuvosa. Isso inviabilizou a pesca de sururu, ostras e outras espécies, deixando as famílias pesqueiras em situação de vulnerabilidade socioambiental, socioeconômica e de insegurança alimentar. Este cenário se repetiu nos últimos três anos.
O novo pedido de audiência acontece justamente para avaliar a atual situação e exigir uma ação emergencial para os impactos que estão sofrendo com a cheia do Rio Jaguaribe. “Essas mulheres sofreram três grandes processos impactantes: o derramamento de óleo no litoral nordestino, que impactou o marisco; a pandemia, que afetou todos nós; e o alto volume de chuvas”, lembrou o parlamentar.
Na avaliação de Cleomar, é necessário ser criado um auxílio emergencial para as marisqueiras e que haja um estudo para avaliar a criação de um Seguro defeso, que contemple quem sobrevive da captura de mariscos. “A gente também acha importante a aprovação do projeto de lei e constituir o grupo de trabalho conosco”, pediu.
A pescadora Francisca Carneiro, da comunidade de Jardim, em Fortim, reforçou que a situação atual expõe famílias inteiras à situação de vulnerabilidade. “Tem pescadora que sobrevive só do pescado. Tem mãe que tem seis filho e vive só pescado. A gente não tem apoio quando chega a água doce. A gente vem trazendo essa dor grande”, acrescenta.
Emergência climática
Um dos convidados da audiência, o físico Alexandre Costa, professor da Universidade Estadual do Ceará (Uece), explicou que nos próximos anos, por causa das mudanças climáticas, os impactos na zona costeira cearense podem ser ainda maiores. “Temos hoje condições inéditas de concentração de gases de efeito estufa nos últimos 3,5 milhões de anos. O clima do planeta não tem como se comportar da mesma forma que a civilização humana se estabeleceu”.
Alexandre aponta que, em 2023 e no início deste ano, o planeta ficou muito próximo da marca de 1,5ºC acima, que é considerada a porta de entrada para um aquecimento global perigoso. “Esse limite aparece hoje em dia num horizonte muito próximo”, advertiu. Há dez anos, projetava que atravessaríamos essa fronteira apenas em 2045. Hoje, a previsão é que isso aconteça em 2033. “Antecipamos a entrada na zona de aquecimento global perigoso em mais de 10 anos”, acrescentou o pesquisador.
O processo está acelerando e já tem característica daquilo que o planeta espera para um aquecimento acima de 1,5ºC, com aparecimento dos chamados eventos extremos complexos, que são simultâneos e conectados. “Isso já está acontecendo no Brasil. Quase simultaneamente, houve a seca na Amazônia, onda de calor no Brasil Central e parte do sudeste, a colisão das massas de ar ao sul e essa massa de ar quente alimenta, do ponto de vista dinâmico, as chuvas no Rio Grande do Sul e um aquecimento recorde no Atlântico Sul que fez com que tivesse chuvas acima da média mesmo com El Niño, algo virtualmente inédito”, detalhou o professor.
E como isso impacta as marisqueiras?
O pesquisador defende que haja uma política sustentada, de fôlego e a longo prazo, já que as comunidades de pescadoras estarão sujeitas e mais vulneráveis aos eventos extremos, como o aumento da temperatura e a elevação do nível do mar. “Isso põe em risco e as comunidades podem sofrer com desalojamento. Inevitavelmente, teremos queda falésias, invasão de praia, enchentes costeiras, como de natureza fluvial e oceânicos”, descreve.
As chuvas se tornam mais concentradas e intensas causarão as cheias dos rios e isso pode causar uma variação de salinidade. “Isso vai impor variações de salinidade pra cima em geral, mas pra baixo em anos excepcionalmente úmidos, que vai prejudicar brutalmente a produção de mariscos”, completou.
A audiência pública trouxe alguns encaminhamentos importantes, como a formalização do pedido de benefício ou auxílio para as pescadoras às prefeituras de Fortim e Aracati; a realização de um estudo para avançar na criação do Seguro Defeso, em parceria entre o Ibama e a Secretaria de Pesca e Aquicultura; a Defensoria Pública da União (DPU) fará uma visita aos territórios para receber as demandas; uma reunião técnica com INSS e representantes dos territórios para verificar problemas em relação aos benefícios previdenciários; o Governo do Estado vai consolidar o cadastro das mulheres pescadoras, incluindo de Paracuru, e formalizar, através de portaria, a criação do GT pescadoras.
Outras ações dizem respeito à luta pela aprovação da lei do Zoneamento Ecológico-Econômico da Zona Costeira do Ceará (ZEEC), o projeto 1221/2023, que cria a Política Estadual de Desenvolvimento Socioambiental Sustentável das Atividades das Mulheres Pescadoras no Ceará; a convocação do Painel Cearense de Mudanças Climáticas através da Alece; e a capacitação do serviço público para a lógica das mudanças climáticas.