Em artigo publicado no Jornal O Povo desta quinta-feira, 21, o epidemiologista, pesquisador e professor de Medicina da Universidade de Fortaleza (Unifor), Antonio Lima Neto, discute acerca do negacionismo científico sustentado pelo Governo Bolsonaro e os impactos da disseminação sistemática de desinformação, principalmente em relação à eficácia das medidas de combate à pandemia no Brasil. Confira.
Em novembro de 2020, um procedimento disciplinar foi oficialmente instaurado para investigar a conduta do proeminente cientista francês Didier Raoult, o famoso Doutor Cloroquina. A Ordem Nacional dos Médicos Franceses aceitou a queixa de um grupo que representa 500 infectologistas da Sociedade de Doenças Infecciosas da França (SPILF na sigla em francês) que o acusa de quebrar nove regras do código de ética médica ao espalhar informações falsas sobre o benefício da hidroxicloroquina, administrada isoladamente ou em combinação com azitromicina, no tratamento da Covid-19.
Em exame minucioso acerca do último estudo publicado pela equipe de colaboradores de Raoult que avaliou a eficácia das drogas em julho de 2020, o pesquisador Jason Goldman, em carta dura ao editor da revista científica que publicou os resultados, aponta uma série de procedimentos que anulariam a validade dos resultados, citando entre outros: a omissão de dados, a exclusão do estudo de pacientes que morreram ou que necessitaram de transferência para um leito de UTI e a falta de informação sobre possíveis efeitos colaterais das drogas utilizadas na intervenção.
No início de janeiro, Raoult confessou o “erro”, aceitando que “a necessidade de oxigenoterapia, a proporção de transferidos para leitos de terapia intensiva e o número de mortes, de fato, não foram diferentes entre os grupos que receberam a hidroxicloroquina e o controle”. Duas semanas depois desdisse, voltando a reafirmar o poder da cloroquina, sem mencionar sua própria declaração em contrário.
Sua performance bizarra nesse episódio lembrou dois personagens sobre os quais teve forte influência. Os primeiros estudos de Raoult foram cruciais para a construção e manutenção do discurso, que se fez negacionista, dos presidentes dos países com maior número de mortes por Covid-19: Donald Trump e Jair Bolsonaro.
Em 2020, a presidência da república teria encomendado ao Laboratório Químico e Farmacêutico do Exército (LQFEX) uma produção estimada de 3,2 milhões de comprimidos de difosfato de cloroquina para o combate à Covid-19. Em novembro restavam 400.000 comprimidos, 33% a mais do que se fabricou para uso contra a malária em anos anteriores. Tristemente, um número incalculável de pessoas utilizou derivados da cloroquina sem qualquer necessidade. O Tribunal de Contas da União (TCU) investiga se houve superfaturamento dos insumos utilizados para a fabricação.
Não se sabe o que o exército fará com o estoque do medicamento, caso não haja aumento exponencial dos casos de malária no Brasil, depois do que afirmou a direção da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) na reunião que aprovou a utilização emergencial das vacinas Coronavac e Oxford-Astrazeneca, ocorrida no último domingo, 17 de janeiro.
"Durante o ano mais desafiador para a saúde dos brasileiros e, sobretudo, para os médicos e profissionais de saúde, o CFM e a maioria das suas seções regionais mantiveram o mais absoluto silêncio diante do discurso anticientífico do governo Bolsonaro na resposta à pandemia".
A Anvisa informou oficialmente que não há medicamento ou droga eficaz no tratamento da Covid-19. Esta é uma das principais, senão a mais importante, razão para a aprovação do uso emergencial de vacinas.
O Conselho Federal de Medicina (CFM) discorda da Anvisa e tem papel fundamental na persistência da ideia de tratamento precoce capitaneada pelo Governo Federal. Baseado em um parecer datado de 16 de abril de 2020, o conselheiro relator, o cirurgião-geral Mauro Luiz de Britto Ribeiro, eleito presidente do CFM em 2019, afirmou que “o Conselho Federal de Medicina propõe considerar o uso da cloroquina e hidroxicloroquina em pacientes com sintomas leves no início do quadro clínico, em que tenham sido descartadas outras viroses (como influenza, H1N1, dengue), e que tenham confirmado o diagnóstico de Covid 19, a critério do médico assistente, em decisão compartilhada com o paciente”. No final do parecer CFM nº 04/2020, o doutor Mauro Ribeiro afirma que “Essas considerações (do parecer) que serviram de base para as decisões do CFM basearam-se nos conhecimentos atuais, podendo ser modificadas a qualquer tempo pelo Conselho Federal de Medicina à medida que resultados de novas pesquisas de qualidade forem divulgados na literatura.”
O problema não é o documento escrito ainda no início da pandemia quando tratamentos experimentais diante da mortalidade elevada eram certamente aceitáveis. A questão é como justificar que depois de nove meses e publicação de estudos robustos nas revistas científicas mais respeitadas do mundo, que apontaram a absoluta ineficácia da cloroquina em qualquer fase da doença, Ribeiro e colegas da direção do CFM não tenham visto a necessidade de atualizar o parecer?
Em outras palavras, o conselho permanece desobrigando médicos de seguir as evidências científicas e liberam o uso de um medicamento cuja indicação para pacientes com Covid-19 foi banida em todo ocidente. Permitem que médicos, ao prescrever uma droga ineficaz, flertem com o charlatanismo, ajudando a incutir uma falsa sensação de segurança no paciente, facilitando inclusive a não-adesão deste às medidas de distanciamento e proteção individual, já que estaria imune à infecção ou em processo seguro de tratamento. Nesse caso, a ideia da autonomia do paciente, de que este aceita por vontade própria a prescrição, deforma a prática médica, pois quando do olimpo da cadeira do médico parte uma pretensa solução para uma doença (sem cura à vista), evidentemente esta será aceita pela maioria das pessoas leigas, ainda mais em momento de fragilidade.
Durante o ano mais desafiador para a saúde dos brasileiros e, sobretudo, para os médicos e profissionais de saúde, o CFM e a maioria das suas seções regionais mantiveram o mais absoluto silêncio diante do discurso anticientífico do governo Bolsonaro na resposta à pandemia. Omitiram-se dos debates travados nos Estados que tentavam organizar uma resposta baseada em evidências à pandemia, que neutralizasse o discurso negacionista que vinha do planalto. O silêncio foi tão eloquente e cúmplice que motivou uma carta aberta de ex-presidentes e conselheiros dirigidas à direção do CFM e aos Médicos e Médicas do Brasil em que se exigia entre outras ações “que o CFM oriente a população médica brasileira quanto ao adequado comportamento ético a ser adotado nesta pandemia evitando o uso de condutas terapêuticas sem respaldo científico.”
Não houve resposta aos ex-presidentes mas um esclarecimento anódino e de pouca relevância de que o CFM afirmava que “a aprovação (emergencial ou definitiva) de vacinas contra a covid-19 pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) deve ser respeitada e posta em prática.” Será que o conselho poderia ser contra? Detalhe. No documento, reafirma-se que as autoridades competentes devem respeitar o parecer CFM nº 04/2020. Ou seja, médicos podem continuar prescrevendo livremente cloroquina, mesmo sem base na literatura.
Fonte: Jornal O Povo Foto: Carolina Antunes/PR