Dois projetos de lei, que se encontram em discussão nos bastidores da Câmara dos Deputados, pretendem restringir o controle dos Estados sobre as polícias e os bombeiros. As propostas, que atendem interesses do presidente Bolsonaro, centralizam no Governo Federal o comando da força das polícias civil e militar. Um dos projetos foi apresentado há 20 anos mas ganhou impulso recentemente, após negociações da bancada da bala com o Ministério da Justiça e Segurança Pública.
Os projetos sugerem, entre outras medidas, a criação de uma lista tríplice para a escolha dos comandantes-gerais da PM, que terão de cumprir mandatos de dois anos e só poderão ser exonerados pelo governador antes do término desse prazo se a decisão for “justificada e por motivo relevante devidamente comprovado”. Hoje, em decorrência da autonomia dos chefes do Executivo, os comandantes-gerais podem ser escolhidos diretamente pelos governadores, sem necessidade de lista prévia - o requisito é apenas o de que sejam oficiais do mais alto posto das corporações -; e a exoneração pode se dar a qualquer momento.
As propostas trazem também mudanças nas estruturas das polícias, como a criação da patente de general para a Polícia Militar e de conselhos de policiais civis ligados à União. Os projetos impõem limites tanto à nomeação quanto à destituição dos chefes das instituições. Além da criação do cargo de general nas PMs e nos bombeiros, uma patente mais elevada que a de coronel, os comandantes serão equiparados aos secretários de Estado, com todas as prerrogativas a que têm direito os demais integrantes do primeiro escalão dos governos estaduais.
As propostas enfraquecem o controle do Executivo sobre as forças de segurança e ampliam a autonomia administrativa, financeira e até funcional no caso da polícia militar. Na opinião de especialistas em segurança, são iniciativas que abrem a possibilidade de uma ruptura institucional. "Trata-se de um projeto despropositado que serviria apenas para alimentar a clivagem entre os policiais e os governadores, cuja autoridade seria colocada perigosamente em questão e de forma permanente. O motim da PM ocorrido em fevereiro de 2020 no Ceará é uma mostra do quão arriscado é um projeto como esse para a sociedade", avalia o cientista social e jornalista, Ricardo Moura.
Para o pesquisador do Laboratório de Estudos da Violência (LEV), Luiz Fábio Silva Paiva, os projetos evidenciam interesses políticos, muito mais no sentido eleitoral imediato do que no sentido de qualificar o serviço policial que atende à sociedade. “Sabemos que há interesses corporativos, visto que percebemos que as polícias, cada vez mais, têm sido povoadas por políticos profissionais que tem aparelhado estas organizações", afirma.
Segundo Paiva, esse processo tem sido nefasto para a sociedade brasileira, na medida que policiais têm utilizado essa força eleitoral como moeda política. "Temos visto o aumento das violências policiais, principalmente no Ceará, o incremento de ações de abuso de autoridade e enfraquecimento dos dispositivos de controle social”, ressalta. Para o sociólogo, esses projetos são “uma medida que fortalece um grupo político, criando uma instância nacional e enfraquece os governos estaduais, distanciando as polícias da sociedade, quando deveríamos estar ampliando esse debate e essa interlocução”, completa.
Os textos ainda não foram formalmente protocolados na Câmara Federal, mas já mobilizam discussões entre os parlamentares e especialistas em segurança pública. O mais avançado deles seria o substitutivo ao Projeto de Lei (PL) 4.463/2001, que trata das mudanças na estrutura da PM. O texto tem como relator o deputado Capitão Augusto (PL-SP), líder da bancada da Bala e aliado do governo.
Em depoimento à Rede Brasil Atual, o tenente-coronel aposentado da Polícia Militar de São Paulo, Adilson Paes de Souza, disse que essa movimentação no Congresso para retirar o controle sobre as forças de segurança “é mais um desserviço à nação” e uma forma de “aproveitar a situação da pandemia, que só está se agravando, para ‘passar a boiada'”. Para o oficial, não há nenhum exagero em pensar que as propostas revelam um “golpe já em andamento”. “Certeza que esse projeto é um passo solene e firme dado em direção a uma ruptura institucional”, alerta.
Em artigo que circulou sobre o assunto na semana passada, intitulado "Autonomia policial ou emancipação predatória?", a professora Jacqueline Muniz, do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense, destaca que o principal argumento dos defensores dos projetos é uma suposta ingerência política dos governadores sobre as forças policiais. "É o discurso-chantagem para ampliação do poder coercitivo para fins particulares. É a cantilena corporativista que tem possibilitado a milicialização, cujo nome adequado é constituição de governos autônomos policiais: um fenômeno comum quando a espada se autonomiza da sociedade, do estado e do governo eleito", destaca. (Texto: Evelyn Barreto, com informações do jornal Estado de São Paulo e Rede Brasil Atual. Foto: Divulgação)