Concursos públicos realizados no Ceará terão de garantir 20% das vagas para candidatas e candidatos negros. É o que determina o Projeto de Lei (PL) 23/2021 aprovado na tarde dessa quinta-feira, 04, durante sessão presencial na Assembleia Legislativa. O documento aprovado contou com Emenda Modificativa 2/2021 apresentada pelo deputado estadual Renato Roseno (PSOL), que determina que autodeclarados negros e negras terão de passar por uma comissão de heteroidentificação previamente à realização das provas. O PL aprovado segue para sanção do governador Camilo Santana.
Durante a votação, Roseno destacou a importância da aprovação do projeto das cotas. “As políticas afirmativas, como são as políticas de cotas instituídas pelo poder público e, em sua esteira, aplicadas em outras esferas da sociedade, são expressão da necessidade de reparação histórica contra a escravidão e outras formas de violência social cometidas secularmente contra negras e negros no Brasil", defendeu. "Sem esse ajuste com as iniquidades cometidas no passado e suas formas presentes atualizadas, não é possível reinventar um novo futuro pleno e democrático para nosso país”.
E a luta dos movimentos de pessoas negras teve grande parcela de importância na aprovação do projeto. Solicitando apoio aos deputados, 18 associações e coletivos de negritude se juntaram para produzir uma nota pública destacando a importância da política de cotas, principalmente quando diz respeito à dívida histórica do Brasil, em especial do estado do Ceará. “Para o combate ao racismo e a discriminação racial, no último país a abolir a escravidão no mundo, políticas de ações afirmativas, identificadas nas políticas de cotas, são fundamentais. Tanto na educação quanto no mercado de trabalho”, destaca o documento.
RACISMO ESTRUTURAL - Para a coordenadora municipal do Movimento Negro Unificado - Fortaleza CE/Coalizão Negra por Direitos, Daniela Silva, é preciso enfrentar todo um sistema que se baseia no privilégio branco. “As desigualdades sociais no Brasil têm raízes no preconceito em ação. Essa discriminação, o qual nomeamos de racismo estrutural, se renova continuamente e marca estruturalmente a distribuição desigual de acesso às oportunidades, aos recursos, às informações, à atenção e a poder no cotidiano, na sociedade, nas instituições e nas políticas de Estado”.
A Lei Áurea, em apenas dois artigos, determinou a abolição da escravidão e revogou as disposições contrárias, sem que houvesse, naquele momento, nenhum mecanismo de real inclusão social dos negros. Sobre essa reinserção, o professor e mestre em História Hilário Ferreira desconstrói um lugar comum através do qual as vozes contrárias às políticas de reparação questionam se há efetivamente população negra no Ceará.
“Nós temos, como consequência desse processo do racismo estrutural, o próprio silenciamento e o apagamento da história dos negros e negras na história do Ceará. Essa população esteve presente desde a invasão dos europeus em terras cearenses", esclarece o professor. "Há casos, por exemplo, que aparecem no diário Matias Beck, que retratam a vivência e relação do povo negro com os povos indígenas. Há relatos que um dos negros vindos com Beck, chamado Domingos, ao chegar aqui, conheceu um negro de nome João Malemba, o chefe das expedições dos índios”, acrescenta.
REPARAÇÃO - Para a professora da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab) e coordenadora do projeto Mulheres Resistem - Processo Formativo Teórico-político para Mulheres Negras, Vera Rodrigues, o dia 4 de março de 2021 será marcado por uma grande compensação histórica. “O legislativo cearense, bem como toda a sociedade, tiveram a oportunidade de promover uma reparação histórica necessária ao povo negro cearense", destaca.
Segundo Vera, o projeto de cotas é fruto da luta antirracista e pode ser um marco na afirmação da ancestralidade negra no estado. "É necessário agir, se de fato defendem uma sociedade mais justa e igualitária, como tantas vezes ouvimos. Hoje o Ceará criou uma história digna do seu povo, da sua ancestralidade, e marca o valor da democracia e da justiça social no estado”, destacou. (Texto: Evelyn Barreto / Foto: Reprodução)
Quem assina a nota
A Nota de Solicitação de Apoio dos deputados foi subscrita pela Associação Afrobrasileira de Cultura Alagba; Associação Nacional de Preservação do Patrimônio Buntu - ACBANTU; ANDES - Sindicato Nacional dos Docentes da Educação Superior; Coalizão Negra por Direitos; Comissão da Promoção da Igualdade Racial - OAB/CE; Coletivo Cultural de Matrizes Africanas Ibile; Enegrecer; Fórum de Ações Afirmativas e da Educação das Relações Etnico-raciais das Universidades Cearenses; Grupo de Valorização Negra do Cariri - Grunec; Instituto de Formação José Napoleão; Movimento Negro Unificado; Neabi; Nuafro/Uece; Projeto Mulheres Negras Resistem: Processo Formativo Teórico-político para Mulheres Negras; Rede de Mulheres Negras do Ceará - RMNC; Rede Nacional Afrobrasileira e Saúde - Renafro; Terreiro das Pretas e Unegro.
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