No ano passado, o Brasil aprovou a sua Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD – Lei 13709/18), marco legal que regulamenta a utilização de informações por parte de empresas privadas e também pelo poder público. A nova legislação entra em vigor em 2020, criando um arcabouço legal que garante a privacidade e a tutela de direitos fundamentais dos cidadãos e cidadãs brasileiras diante do fluxo de informações na internet, colocando o país em sintonia com outras legislações internacionais de referência no campo da proteção de dados.
Apesar da aprovação da LGPD, a efetiva aplicação da nova lei e a regulamentação de seus dispositivos ainda são motivo de preocupação de entidades de defesa dos direitos humanos e dos direitos da comunicação. Para debater esse novo cenário informacional, o mandato É Tempo de Resistência, do deputado estadual Renato Roseno (PSOL), promoveu na última sexta-feira (29), em parceria com a Cripto Baião Fortaleza 2019 e com o Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, o debate “Proteção de dados pessoais na internet”. O evento teve como palestrante o sociólogo Sérgio Amadeu, professor da Universidade Federal do ABC (UFABC-SP) e membro do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.Br); e contou com a presença da jornalista Marina Pita, coordenadora do Intervozes; e Uirá Porã, diretor do Instituto Brasileiro de Políticas Digitais – Mutirão.
"Um dos maiores ativos do capitalismo que nós conhecemos, e que tem se alterado com muita velocidade, é a produção, em larguíssima escala, de dados. Desde o CPF que vc coloca nos porteiros eletrônicos até a biometria na entrada das repartições públicas", afirmou Renato Roseno, na abertura do debate. "Existe um movimento da sociedade civil, muito criativo e corajoso, que tem se dedicado a compreender esse tema e suas derivações: os direitos na rede, a neutralidade na rede, a luta pelo marco civil na internet, o enfrentamento das corporações de tecnologia da informação. Esse movimento que conquistou a lei federal 13.709/18 (LGPD), que disciplina a proteção de dados pessoais e privacidade na internet".
Um projeto de lei estadual (PL 41/19) de autoria do deputado do PSOL, construído em parceria com o Intervozes, que suplementa no âmbito do estado do Ceará a LGPD, está tramitando na Assembleia Legislativa. "Ao contrário do que algumas pessoas podem imaginar, esse não é um debate high tech, distante. Ele impacta muito a nossa vida cotidiana. Porque trata justamente de conhecimento livre, de cultura livre, de utilização socialmente robusta das tecnologias de informação", defende Renato.
Segundo o professor Sérgio Amadeu, em 2017, as cinco empresas mais valiosas no mercado de ações (Apple, Google, Amazon, Microsoft e Facebook) tiveram a maior parte de seus faturamentos oriunda da negociação de dados pessoais. Somados, os faturamentos dessas corporações representa algo em torno de 26% do PIB brasileiro. "São empresas que manipulam, tratam e vendem dados pessoais. Esses dados passaram a ser um elemento crucial da economia informacional", explicou.
O professor citou o exemplo do Whats App, que, em 2017, serviu de plataforma para a circulação de 50 bilhões de mensagens diárias. Mesmo que aceitemos a informações de que essas mensagens são encriptadas, ele destacou que o Whats App tem acesso aos metadados das mensagens. "Ele fica sabendo quem falou com quem, quando e onde, de forma georreferenciada", afirmou. No caso do Google, são cerca de 59 mil buscas por segundo, o que faz com que a companhia tenha informações sobre quais conteúdos estão sendo buscados e em que contextos. "O google sabe o humor de cada cidade, de cada país, de cada sociedade".
Segundo Sérgio, se o Brasil não tiver uma autoridade de proteção de dados que atue efetivamente, dificilmente a lei vai sair do papel. "Porque é uma lei que lida com empresas muito tecnológicas, que possuem muitos meandros", afirmou. A Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) chegou a ser criada pela medida provisória nº 869, de 27 de dezembro de 2018. Mas sua composição e sua regulamentação, contudo, ainda não foram definidas. Para o professor, o fato de a ANPD ficar subordinada à Presidência da República, deixa o órgão muito suscetível a influências dos interesses políticos do poder de plantão e não da sociedade civil.
"Eu não acho que, do jeito que está colocado, isso garanta no Brasil uma efetiva proteção de dados. A autoridade precisa ser autônoma para mexer com temas que têm uma dimensão econômica brutal", afirmou. "Um dos desafios dessa nova legislação é a gente melhorar a constituição e o funcionamento da ANPD. E também continuar a luta em defesa dos projetos que estão tramitando nos estados e municípios".
Em sua intervenção, a jornalista Marina Pita tratou da relação entre as tecnologias de informação e o conceito de "privacidade". Segundo ela, privacidade não é só aquilo que queremos esconder do olhar das outras pessoas. "Teorias mais modernas definem a privacidade como o poder de escolher camadas de acesso a informações. O sujeito não é o mesmo em todos os ambientes. É legítimo que a gente possa construir nossa personalidade dessa forma, definindo quem e em que contexto pode ter acesso a uma informação ou a outra. Isso se chama autodeterminação informativa. É a privacidade como camadas de acesso ou negação de informação", explicou.
Além disso, Marina alertou para o fato de que não é possível a existência de um sujeito social sem o direito à privacidade. "Não é possível sem ter esse espaço de negociação com a cultura social de seu ambiente. A privacidade, portanto, vai garantir a própria existência da individualidade. É mais importante do que nós consideramos", afirmou. "Isso porque nós estamos à mercê de que outros agentes interfiram no nosso pensamento. Nunca na história foi possível detalhar o raciocínio de uma pessoa, compreender como ela desenvolve o seu conhecimento. Neste momento, portanto, a lei se torna ainda mais importante".
Para Uirá Porã, a vida contemporânea está cada vez mais mediada pelas tecnologias de informação. "Se as pessoas não compreendem essas tecnologias, não entendem essa mediação, elas passam a ser mais e mais manipuláveis", defendeu. "Esse é um debate sobre emancipação humana. Ou a gente programa ou a gente é programado. A eleição do Bolsonaro mostra como é possível você modular uma sociedade".
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