Páginas de infâmia e crueldade. Relatório produzido pelo Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura, divulgado esta semana em Fortaleza, revela um quadro de sistemáticas e gravíssimas violações de direitos fundamentais no sistema prisional cearense. O documento, produzido a partir de visitas realizadas entre os dias 25 de fevereiro e 1º de março deste ano por peritos da entidade em três unidades prisionais do Estado, revelou um quadro de verdadeira barbárie institucionalizada nas penitenciárias cearenses.
As unidades visitadas foram o Centro de Triagem do Estado, o Centro de Detenção Provisória e a Casa de Privação Provisória de Liberdade (CPPL III). Nesses locais, os peritos constataram diversos problemas: superlotação, falta de acesso à água, falhas na assistência médica, humilhações e maus tratos psicológicos, restrição de visitas, privação de alimentos e ausência de condições básicas de higiene. Os técnicos também identificaram um grande número de indícios de tortura: dedos quebrados, retirada de ventiladores, retenção dos “malotes” (recipientes com alimentos enviados pelos familiares dos presos), uso desproporcional de spray de pimenta e outras armas não-letais, incomunicabilidade, etc.
As visitas ocorreram após inúmeras denúncias feitas pelos familiares dos presos. Além dos problemas identificados nas unidades, os peritos identificaram irregularidades nas transferências entre os centros de detenção. A estimativa é que mais de 3 mil detentos foram transferidos sem a devida notificação ao juiz de execução penal. “Os familiares dos presos ficaram sem saber onde estavam seus presos. Isso necessariamente é uma violação de direitos. Você ser transferido de um lado para outro sem que seus familiares saibam, sem que você saiba, sem que seus advogados saibam, sem que o Poder Judiciário fique sabendo. Isso atrasa processos, isso atrasa várias coisas. Essa é uma perspectiva que a gente achou muito grave”, avalia o perito Luís Gustavo Silva.
SUPERLOTAÇÃO - O relatório foi apresentado durante audiência pública realizada pelo Conselho Nacional de Direitos Humanos na sede da OAB Ceará na manhã da última quarta-feira (10). A audiência reuniu centenas de familiares de presos, além de promotores, defensores e representantes do governo do Estado e de instituições de defesa dos direitos humanos. “O objetivo foi dar voz para quem não estava tendo voz. O momento foi oportuno para as pessoas que não estavam conseguindo se expressar pudessem trazer suas demandas e suas reivindicações”, afirmou Leonardo Pinho, presidente do CNDH.
Segundo Leonardo, durante a missão no Ceará também foi constatada um grave quadro de superlotação na unidade prisional feminina. “O Instituto Penal Feminino tem capacidade para 370 detentas, mas a unidade atualmente possui 1090 presas. A nossa avaliação é que após esse contato, haja uma vontade de avançar no sistema, apostar na ressocialização, diminuir a superlotação. Só é possível ter um sistema prisional eficiente, se ele promove os direitos humanos”, complementou.
Presidente da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa, o deputado estadual Renato Roseno (PSOL) destacou que esse quadro de barbárie vai resultar em ainda mais violência e ódio. “Nós estamos numa disputa em que nos rendemos à barbárie ou afirmamos a civilização”, destacou. “Nenhum de nós do movimento de defesa dos direitos humanos é contrário à responsabilização das pessoas que erraram. Responsabilizar é um ato civilizatório. A questão, portanto, é como fazer essa responsabilização”.
BARBÁRIE - Renato ressaltou que os movimentos de defesa dos direitos humanos não advogam a impunidade; mas também não afastam a necessidade do estado democrático de direito. “O processo penal e o direto penal têm um propósito, que é nos afastar da barbárie e nos levar à paz”, defendeu. “A paz é fruto da justiça, não é fruto da violência. A violência só nos levará a mais violência. Queremos uma execução penal que seja civilizatória e humanizante. Que ela seja a possibilidade de uma vida nova e não o retorno de uma vida antiga e de mais violência”.
Para o deputado, o sistema penal cearense tem, entre outros graves problemas, uma alta taxa de presos provisórios. “A porta de entrada é muito grande e a porta de saída é muito pequena. Esse sistema tem uma pequena capacidade de reinserção social”, afirmou o parlamentar, que acusou a Secretaria de Administração Penitenciária de não possuir um planejamento de médio ou longo prazo, o que faz com que tenha de recorrer às intervenções federais.
“O Ceará não pode se acostumar a viver num regime de exceção. Quem vive de intervenção é regime de exceção”, definiu. “Não é possível que o principal símbolo da atual gestão seja o escudo da Força de Intervenção. Precisamos recurperar os parâmetros democráticos. Queremos que sejamos conhecidos por uma política de gestão prisional produtora de paz e justiça, em que as pessoas sejam responsabilizadas na medida dos seus erros, mas que possam abrir outras portas para suas vidas”.
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