Por Alexandre Mapurunga
Nossa sociedade é construída a partir de uma lógica capacitista. Tal qual outras formas de opressão, o capacitismo confere valor e dignidade ao indivíduo conforme sua adequação ao ser humano normativo e normalizado pelo Homem Vitruviano de Da Vinci: branco, hétero, cis, macho, simétrico, sem deficiência aparente. Desta forma, o capacitismo estrutura a sociedade hierarquizando os corpos e as mentes, tornando mais ou menos abjetas as pessoas a partir da percepção social de capacidade. Nessa escala de exclusão, as pessoas com deficiência estão topo, incluindo as pessoas autistas.
O capacitismo é estruturante de nossa sociedade. Nossas escolas, os ambientes de trabalho, o transporte público, o ambiente político não foram feitos para acomodar as diferenças e, por isso, não as enxergam. Pessoas autistas e com outras deficiências então enfrentam barreiras diárias que, ao longo da vida, tiram oportunidades de desenvolvimento, violentam, segregam, empobrecem, aprisionam e matam nossa população.
O capacitismo tem interfaces com as outras formas de opressão. O racismo e o machismo já qualificaram pretos e mulheres como menos capazes intelectualmente para justificar a perda dos seus direitos, autonomia e dignidade. Também é corrente a tentativa de controlar comportamentos supostamente inadequados e a busca pela conformação de corpos que violenta a comunidade LGBTQI+.
Pessoas autistas e com outras deficiências são também atravessadas por essas diversas experiências opressoras que se interseccionam nos seus múltiplos contextos de vida. Comumente se pensa na deficiência ou no autismo como um problema isolado, fora do seu contexto, como se fossem categorias absolutas. Isso é um completo equívoco. O contexto social é definidor de nossas vidas. Se temos apoios, se temos uma legislação pró-inclusão que nos defenda da discriminação, se vivemos em comunidades inclusivas, com acessos aos mesmo bens e serviços públicos que as demais pessoas e com os serviços que precisamos especificamente por conta de nossa deficiência, poderemos usufruir dos nossos direitos em igualdade de condições com as demais pessoas. Caso contrário, se a escola não oferece os apoios, se o CAPS não atende, se a UBS recusa a acolher, se eu não consigo transitar pela cidade, se o preconceito me atinge e eu não tenho a quem recorrer, meus direitos estão sendo negados a custas de um alto impacto social e pessoal. Perceba que isso não tem a ver com a gravidade do autismo, mas como a sociedade se organiza para ser mais ou menos acessível e inclusiva.
Ser autista em uma sociedade capacitista implica em viver sob essa lógica opressora que estrutura nossa sociedade capitalista, que retira nossa dignidade inerente, nossa autonomia, nossas possibilidades de se expressar e ser levado em conta. O autismo ainda tem a hegemonia do discurso médico normalizador, vindo de profissionais da área de saúde e de pais que são facilmente cooptados pela faceta do capacitismo conhecida por Modelo Médico.
Ainda são poucos os espaços onde é garantido o protagonismo das próprias pessoas autistas para que falem de sua pauta e, inclusive do que acham das intervenções propostas pelos tais especialistas, muitas vezes tidas como invasivas e violentas.
Se você é uma pessoa autista preta ou periférica, pode também não se ver retratado nas campanhas feitas pela maioria das entidades que teima e associar o autismo a uma agenda essencialmente de classe média, tanto na estética como na pauta.
Voltamos ao Homem Vitruviano. Cor azul para falar da suposta prevalência maior em meninos, o que tem sido desmentido por conta do ativismo consistente de mulheres autistas. Autistas pretos e periféricos penam para conseguir o diagnóstico e a imagem do autista de classe média deve ter impacto nesse momento, bem como, é claro, a indisponibilidade de serviços nas periferias. O caso é que muitos autistas não brancos acabam tendo outros diagnósticos, são encaminhados para instituições de longa permanência ou até para os sistemas socioeducativo ou penitenciário, dada essa interface de exclusões: racismo-capacitismo.
Pessoas autistas estão mais sujeitas a violência física e sexual, em particular mulheres e crianças. Segundo o Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA, 2016), até 68% das mulheres e até 30% dos homens com deficiência sofrem violência sexual antes dos 18 anos. Segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF, 2013), crianças com deficiência têm de 3 a 4 vezes mais chance de sofrer algum tipo de violência que crianças sem deficiência (incluindo violência sexual) e mulheres com deficiência têm 10 vezes mais chances de sofrer abuso sexual que mulheres sem deficiência. Segundo a organização Women With Disabilities Austrália (WWDA, 2015), até 90% das mulheres com deficiência intelectual e psicossocial sofrem abuso sexual em algum momento da vida. Mais uma vez, isso ocorre não por conta da gravidade da deficiência, mas pelo valor humano que se dá às pessoas com deficiência em uma sociedade capacitista.
A pandemia trouxe um impacto desproporcional para as pessoas autistas, ampliando ainda mais o nível de exclusão. Por nossas questões sensoriais, muitos de nós não conseguimos vestir máscaras, ficando impossibilitados de usar o principal instrumento de proteção. Por outro lado, as constantes mudanças de rotina afetam sobremaneira a vida daqueles e daquelas autistas que se organizam a partir dela, ocasionando crises de ansiedade e comportamentais. Os serviços de apoio psicossocial e de reabilitação tiveram suas atividades suspensa ou restritas descontinuando processos terapêuticos muitas vezes essenciais, em especial num momento de maior demanda. As escolas passaram a atender remotamente sem que houvesse uma contraparte de Atendimento Educacional Especializado que, nas escolas, fazem a adequação da rotina pedagógica às necessidades dos alunos com deficiência. Os mecanismos de proteção como Ministério Público, Defensoria, Conselho Tutelar estão funcionando de maneira contingencial justamente quando o isolamento e a segregação se ampliam e quando se estabelece a situação propícia para o aumento da violência.
Sem emprego, sem escola, sem espaços de apoio e sem reabilitação, as famílias de pessoas autistas enfrentam um grau ainda maior de empobrecimento e vulnerabilização social. O Governo Bolsonaro reduziu Auxílio Emergencial de R$ 600,00 para R$ 150,00 e, não bastasse, se utilizou de todas as artimanhas para dificultar o acesso ao Benefício da Prestação Continuada que se ampliaria em 2021 para permitir o acesso de famílias com renda percapta de 1/2 salário mínimo, mas foi reduzido por medida provisória, fazendo que muita gente que antes recebia o benefício, apesar de estar materialmente mais miserável, passasse a ser excluído da política.
O dia 2 de abril foi decretado pela ONU como o dia Mundial de Consciência sobre o Autismo. A ideia é fazer com que os governos, as pessoas autistas, as famílias, a sociedade como um todo discutam a situação das pessoas autistas, bem como formas de promover políticas de inclusão social do nosso grupo, com base na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência. Infelizmente, esse dia tem sido também uma data para difusão de muito preconceito e desinformação. Expressões que diminuem, violentam e deslegitimam a pessoa autista como um sujeito de sua própria história.
O exercício do protagonismo é algo historicamente negado às pessoas autistas, sempre com familiares e médicos falando por nós. Não se pode exigir que uma fala contextualizada logo de início, mas é preciso garantir a oportunidade para compartilhar o espaço público e político. Ter nossa voz considerada. É preciso assegurar os apoios e adaptações para que isso aconteça em igualdade de condições. Só assim as pessoas autistas poderão mostrar ao mundo todo seu potencial.
Precisamos construir uma sociedade que enxergue as pessoas autistas em sua diversidade, em seus múltiplos contextos e, essencialmente, como seres humanos plenos. Para isso, precisamos construir uma prática de luta anticapacitista. (Foto: Agência Brasil)
Sobre o autor
Alexandre Mapurunga é autista, militante do PSOL/CE, defensor de direitos humanos, trabalha como assessor Técnico da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Ceará e é Diretor Técnico da Associação Brasileira para Ação por Direitos das Pessoas Autistas (Abraça).