A militância é fortalecida especialmente quando é dividida com outras pessoas. O poder do coletivo é, inclusive, um grande catalizador para o engrandecimento das pautas pela garantia dos direitos. E quem garante e prova isso é Talita Maciel.
Para a advogada, a militância serviu como uma ferramenta para repartir dores; foi onde ela conseguiu perceber que não estava sozinha em diferentes questões e cenários vivenciados diariamente. A descoberta, sim, foi uma trajetória individual, mas que se ressignificou ao perceber que, para segurar uma bandeira, há muitas mãos e corpos que compartilharão o espaço.
Encerrando nossa série de sete entrevistas com mulheres à frente de lutas por direitos, apresentamos a perspectiva de Talita sobre os diferentes cenários enfrentados pelos movimentos sociais. Talita é advogada, coordenadora colegiada do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca) e do Escritório Frei Tito de Alencar da Assembleia Legislativa do Estado. (Texto e arte: Evelyn Barreto)
É TEMPO DE RESISTÊNCIA - Como você percebeu que suas ações estavam inseridas na militância? TALITA - Quando me dei conta que aquelas opressões sofridas desde a infância por ter nascido mulher negra faziam parte de um processo maior de opressão a que muitos indivíduos estavam submetidos e que não seria possível a libertação sozinha. Descobrir isso por si foi muito libertador, foi motivador de esperanças e de vida. Perceber isso é como virar uma chave que te retira de um padrão, de meta inalcançável, que te traz uma motivação valorosa e ética para a vida, te entrega um compromisso, uma missão de vida. Liberta-nos de nos sentirmos culpadas pela própria opressão que vivemos. Liberta-nos de nos sentirmos menos valorosa, como se nascêssemos com um desvalor impregnado em si, por ser uma mulher e por ser uma mulher negra. E quando ainda não nos damos conta disso, aspiramos superar aquela realidade ocupando o lugar do opressor. Mas logo comecei a perceber que era uma meta muito difícil de atingir, além de um lugar que não queria assumir. Quando descobri a militância foi como um peso que saiu das minhas costas, pois passei a dividir com outras tantas pessoas os grilhões que recebi dos que me antecederam. Libertei-me de padrões que a mim eram impostos, me libertei de metas que não iria alcançar, na verdade que não queria alcançar. Foi quando percebi que essa luta, essa opressão sofrida seria possível vencê-la, mas somente a muitas mãos. Quando me dei conta que não queria o lugar do opressor, na verdade queria acabar a opressão. Dei-me conta de que lado da história eu estava e com quem precisava me irmanar para vencer o machismo, o patriarcado e o racismo. Diante disso, a minha vida passou a ser dedicada a militância e a luta pela emancipação coletiva: mobilizar pessoas, organizar coletivos, partilhar leituras da realidade e viver a práxis da luta. Queria anunciar de forma muito empolgada aquilo que tinha descoberto, mas não só, queria também realizar enfrentamentos necessários no cotidiano para irmos tecendo mudanças concretas e tomando poder para o alcance da tão sonhada justiça social. Queria ler esse mundo com outras pessoas, queria contagiar outras mulheres para esta importante tarefa de mudarmos o mundo e nos libertarmos juntas, pois a liberdade só se constrói coletivamente. Comecei a fazer isso num grupo de jovens da igreja católica, depois na Universidade, junto a comunidade que morava, lutando pelo direito de ir e vir em transportes públicos; pelo acesso a universidade pública; pelo direito a moradia; por trabalho e renda para as mulheres e o mais importante: pelo direito de decidir sobre nossas vidas!
É TEMPO DE RESISTÊNCIA - Que fatores são mais importantes para defesa de uma luta? TALITA - Que seja feita por aqueles(as) que sofrem a opressão. Aprendi muito cedo que a luta das mulheres e a libertação do machismo e do patriarcado será uma luta com o protagonismo das mulheres porque “ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho” como disse nosso grande mestre Paulo Freire. E com certeza precisamos de todos(as): das crianças, dos(as) adolescentes, dos homens, das pessoas brancas. Todos devem tecer nesta luta, mas o que tenho muito certo é de que os que sofrem centralmente a opressão sistêmica precisam necessariamente, fundamentalmente estar e ser parte empoderada do processo.
É TEMPO DE RESISTÊNCIA - Enfrentamos um ano de pandemia, de negação de direitos e de um governo que se retroalimenta do cenário de calamidade. Nesse contexto, o que precisamos destacar no 8M deste ano e de outros que estão por vir? TALITA - As mulheres negras são as primeiras e as principais afetadas em um contexto de crise. Sofrem pelo aprofundamento da pobreza, pelo não acesso aos equipamentos públicos, pelo aumento da sobrecarga das tarefas de cuidados. São as mulheres as principais provedoras dos lares, tanto financeiramente quanto da gestão do cotidiano. Este desgoverno além de ter posturas misóginas em suas falas e posturas, a política engendrada é de um verdadeiro massacre para as mulheres, pois o impacto da não-política ou da redução de investimentos na educação, saúde, proteção social, políticas de transferência de renda etc. impactam frontalmente as mulheres, pois são elas que precisam correr atrás do emprego informal e dos circuitos paralelos de sobrevivência. Em geral, ficam com a tarefa da sobrevivência dos filhos(as) e dos idosos(as) com toda a responsabilidade que isso significa. Além disso, as mulheres sofrem o cotidiano da violência nas ruas, no trabalho e em seus lares. Violência esta legitimada e aprofundada pelo discurso desse desgoverno que justifica a ação machista, que possibilita um maior acesso às armas e que não tem implementada políticas de enfrentamento ao machismo, ao contrário disso, tem sucateado, desestruturado toda a política de apoio e atendimento as vítimas de violência e responsabilização dos(as) agressores. Derrubar este Governo é uma tarefa de sobrevivência para as mulheres.
É TEMPO DE RESISTÊNCIA - Como você avalia a participação de mulheres em movimentos de defesa de direitos e garantias? TALITA - As mulheres sempre foram parte importante no movimento de defesa de direitos. Isso fica muito evidente nas rodas em que se debate, por exemplo, o direito à moradia, à luta pelo acesso e à qualidade da educação, pelo acesso à água e ao alimento, pela garantia do direito à saúde, pelas garantias de condições nos cárceres, na luta por memória e justiça dos(as) filhos assassinados(as). Sempre veremos muito forte as mulheres como parte que move essa engrenagem. Elas sustentam essa luta e garantem que os retrocessos não sejam ainda maiores, elas resistem cotidianamente na porta das prisões, dos postos de saúde, nas ocupações de terra, nas madrugadas em filas por vagas em creches, nas passeatas pedindo paz. São as mulheres que se articulam com outras mulheres nas periferias e batem as portas das instituições e do poder público para exigir direitos. Somos sempre majoritárias ocupando esses espaços. Porque somos também as que garantem a produção cotidiana da vida, porque somos as maiores responsáveis pelo cuidado, somos a força motriz para a engrenagem rodar. E isso também é parte de uma sobrecarga machista a nós imposta, por um desequilíbrio cultural do patriarcado sobre o fazer e o cuidar que nos impõe o dever de lutar por políticas públicas que desonere este cotidiano e garanta direitos.
É TEMPO DE RESISTÊNCIA - E para as que não estão inseridas, como convidá-las a participar desses movimentos? O convite deve acontecer pela aproximação das necessidades cotidianas que impõe a nós mulheres muitos desgastes. Estarmos ombreadas com essas mulheres nas periferias, compreendendo como este cotidiano se perfaz, tecendo redes de vínculos e solidariedade apontando enfrentamentos necessários para essas superações. Também diante dos desafios cotidianos: como a falta de vaga na escola, o não atendimento no posto de saúde, a impossibilidade de visitar um familiar preso. E, a partir da compreensão de solidariedade com outras mulheres que passam pela mesma situação e a necessidade de fortalecer essa luta de forma coletiva, compreendendo tudo isso num contexto social que precisa ser enfrentado. Imagino ser esta a melhor forma de estarmos juntas para superar esse contexto e desatarmos esses grilhões. Sermos sensíveis na organização da luta para não impormos mais encargos para essas mulheres dos que elas já precisam suportar, mas também não construirmos uma luta sem produção de autonomia e construção de sujeitas empoderadas. Anunciarmos a esperança e que só a luta é capaz de nos transformar e transformar a realidade em que vivemos.