O Brasil é hoje o principal laboratório mundial do neoliberalismo. A avaliação é do filósofo e professor da Universidade de São Paulo (USP), Vladimir Safatle, que esteve em Fortaleza no último sábado (6), a convite do mandato É Tempo de Resistência, do deputado estadual Renato Roseno (PSOL), e proferiu a conferência "Neoliberalismo e protofascismo: o caso brasileiro". Ao lado da escritora e transativista Helena Vieira, Safatle falou para uma plateia de cerca de 500 pessoas que lotaram o teatro B. de Paiva, do Porto Dragão, na Praia de Iracema.
Segundo o filósofo, os aparatos políticos, simbólicos e repressivos do grande capital internacional desenvolvem por aqui um experimento que procura responder um problema global do neoliberalismo. O objetivo é consolidar um discurso e uma estratégia permanentes de crise econômica para viabilizar uma agenda baseada na acumulação intocável e na lógica da pauperização. "Nós vivemos em sociedades ingovernáveis, não há mais governo possível. Não apenas na periferia do capitalismo, mas também em países como EUA, França e Inglaterra. São sociedades nas quais as populações começam a se voltar periodicamente contra seus governos, dizendo claramente que não querem ser governados dessa forma", afirmou. "Para responder a um processo cada vez mais brutal de acumulação, a economia precisa então que o discurso da crise seja apresentado a todos".
Para Safatle, os efeitos da crise de 2008, a maior da história do capitalismo recente, são sentidos até hoje. "Tecnicamente, nós estamos em crise global há pelo menos dez anos, sem nenhum horizonte de superação. Porque essa crise não foi feita para passar, é uma forma de governo. Significa que nós viveremos continuamente em crise. Porque governar uma sociedade em crise é possível", defendeu. "Desenvolvimento ninguém vê, nós não estamos bem, estamos empobrecendo, precisamos trabalhar duas ou três vezes mais; e tudo o que o governo nos oferece é a palavra austeridade, que é uma palavra perigosa porque traz consigo um julgamento moral. É um discurso para desmobilizar a revolta e a consciência da nossa espoliação. Sob os auspícios de uma suposta retidão moral, eles usam o estado para nos empobrecer, nos espoliar e nos reprimir".
O filósofo lembrou que quem fala em austeridade são justamente os menos austeros. "São aqueles empresários e banqueiros que, quando quebram suas empresas, vão lá bater na porta do estado e tomam o erário público, socializam as suas crises para toda a população. São eles que falam em austeridade", alertou. "O Brasil é hoje, portanto, esse grande experimento, esse laboratório neoliberal, resultado de uma junção entre o ultraneoliberalismo radical e o militarismo protofascista".
Desde 2003, Vladimir Safatle é professor no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, além de professor convidado e pesquisador em outras universidades e instituições europeias e americanas. É autor de cerca de 20 livros - entre eles, "Cinismo e falência da crítica" (2008) e "O que resta da ditadura: a exceção brasileira" (2010) - e articulista de revistas e jornais. Para ele, a lógica central do protofascismo brasileiro é calar todos os que não se contentam com a vida tal como ela nos é imposta pelo que ele chama de "associação macabra entre militares, pastores, latifundiários, financistas, banqueiros, iluminados por deus, escroques que tomaram de assalto o governo e que sempre estiveram dando as cartas, de forma direta ou indireta".
FASCISMO - O termo fascismo, segundo Safatle, é analiticamente perfeito para definir a atual situação brasileira. Fascista, ele explica, é um modo de governo que se ampara em quatro características. A primeira é o culto à violência como elemento fundamental de constituição da coesão social. "Não há nenhuma sociedade fascista que não seja uma sociedade marcada pela generalização da violência, sob a forma de milícias, de grupos paramilitares, de elogio a torturadores", definiu. "Não há nenhum governo fascista que, em vez de realizar uma solidariedade social nova, não leve a violência da sociedade ao extremo, prometendo um horizonte supostamente pacífico, de uma paz baseada nas armas".
Uma segunda característica é a insensibilidade brutal em relação às classes historicamente violentadas. "Todos acham que é possível fazer troça da violência à qual os outros foram submetidos, que é possível ignorar que as sociedades são compostas por circuitos de violências", explicou o filósofo, "Parar essa história é difícil porque há quase um impulso natural dessas sociedades, de repetir a violência contra negros, índios, gays, transgêneros, mulheres". O problema, segundo Safatle, é de disputa por visibilidade, já que não há existência sem visibilidade. "Sabe-se tacitamente que a maneira de eliminar uma existência é transformá-la em invisível, porque a partir do momento em que ela é visível ela me afeta, ela faz parte do meu horizonte. Então é claro que o fascismo vai sempre usar essa estratégia covarde de negar a cidadão e cidadãs a visibilidade a que eles e elas teriam direito numa sociedade justa".
O terceiro traço característico de um governo fascista é o apego a um poder soberano que se coloca à margem da lei. Para o filósofo, todo fascismo parte do pressuposto de uma espécie de transferência de poder, em que a sociedade entra numa dinâmica anti-institucional por compreender que o jogo político tradicional já não faz mais diferença alguma, mas, em vez de resgatar sua soberania, transfere todo esse poder para a figura de um salvador, um terceiro que vai ser a reencarnação de um poder soberano. "O problema é que, como todo poder soberano, ele está fora da lei. Ele, por exemplo, vai falar o que quiser, sem a menor preocupação sobre as consequências de suas falas", explicou Vladimir.
O quarto elemento é a concepção paranoica de estado social. Isso significa o retorno da ideia do estado-nação, permeada pelo discurso da defesa da identidade, da história oficial, das nossas fronteiras, "sabe-se lá contra quem". "Por essa lógica, nossas crianças, por exemplo, precisam aprender a louvar a nossa história, independentemente se a nossa história for formada por um movimento contínuo de genocídio de negros, de violência contra populações indígenas, dos piores crimes feito pelo estado", reclamou o professor. "Nós conhecemos muito bem essas características. E sabemos muito bem como elas se aplicam ao nosso país hoje".
LIBERDADE - Anfitrião da tarde, Renato Roseno afirmou na abertura do encontro que o pensamento de Safatle dá outros sentidos ao sentimento de desamparo vivido pela população brasileira. "Muitos de nós nos sentimos desamparados. Só que, em vez de ser uma negatividade, esse desamparo pode ser uma possibilidade de transformação", defendeu o parlamentar. "Tudo está em tansformação, o amor, a política, a vida. Minha origem não é o meu destino. Nada está definido. Esse desamparo abre para nós uma possibilidade de reinventar a vida. Nossa grande tarefa é fazer pulsar a transformação, que permita uma vida livre de violências e fascismos, livre de limitações".
Em sua intervenção, a escritora Helena Vieira defendeu que é preciso olhar para as margens da nossa sociedade. Só assim, ela defendeu, iremos encontrar novas formas de vida e de luta para resistir ao avanço do fascismo entre nós. "Precisamos apelar para a nossa imaginação coletiva. Se essas formas de dominação nos experimentam e criam laboratórios, nós teremos que constituir formas e modos de vida em luta, que sejam capazes de produzir respostas a essas questões", explicou. "Precisamos olhar para os modos de vida daqueles que sempre ousaram existir em mundos impossíveis: os povos originários, as travestis e transexuais, as juventudes negas".
Para Helena, as pessoas não estão alheias à política. Elas estão manifestando suas insatisfações frente à precarização social coletiva e cabe à esquerda perceber e dialogar com essas manifestações. "Nós precisamos constituir uma composição possível para essas insatisfações, uma composição que não seja o aumento dos abismos entre nós e aqueles que nós muito confortavelmente temos chamados de 'eles'", destacou. "'Eles' em relação aos quais nenhum esforço dialógico é possível. Porque somos tão radicalmente outros que nós não conseguimos nem conversar. Nós temos de dizer que não são 'eles' somos 'nós'". (Fotos: Lucas Moreira Victor e Lara Vasconcelos)
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