Os impactos das obras do Veículo Leve sobre Trilhos (VLT) e a situação de moradia em 22 comunidades em Fortaleza, do Mucuripe à Parangaba, foram debatidos em audiência pública, nessa quarta-feira, 1º de abril, na Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Ceará. A Secretaria da Infraestrutura do Estado (Seinfra) foi representada pelo coordenador de Transporte e Obra, André Pierre, que assumiu o compromisso de encaminhar na próxima semana as providências para a revisão dos valores destinados a indenizações e aluguel.
O deputado Renato Roseno (PSOL) está formulando projeto de indicação (que é uma sugestão ao Poder Executivo) para corrigir a defasagem dos valores destinados a indenizações por desapropriações e a aluguel social para as famílias atingidas pelas obras do VLT na capital. Ele vai dar entrada com a proposta na próxima semana no Departamento Legislativo.
A atualização dos valores é uma das principais reivindicações das famílias que precisaram deixar as casas onde moravam por causa das obras. O projeto de indicação do deputado Renato Roseno, que atualiza os valores, será apresentado como aporte das discussões realizadas na audiência pública. A proposta prevê obrigação do Estado de atualizar os valores das indenizações oferecidas de acordo com o Índice Nacional de Custo da Construção (INCC), o principal indicador de custo da construção civil no Brasil, e pagamento de juros compensatórios em 12% para casos de perda provisória da posse. O projeto de indicação também atualiza o valor do auxílio social e o valor-base para concessão de unidade habitacional de acordo também com o INCC, que vai de R$ 40.000,00 para 50.000,00, o que ficaria coerente com a proposta de atualização do valor de indenização.
A defasagem dos valores foi uma das principais reclamações apresentadas pelas pessoas que compareceram ao Complexo das Comissões Técnicas da Assembleia – crianças, jovens, adultos e idosos. Eram tantos os interessados em participar da audiência, para expressar insatisfações de diversas ordens, que apenas um auditório não foi suficiente para reunir todos. Parte dos moradores das comunidades afetadas assistiu pelo telão no auditório ao lado, deslocando-se ao auditório principal para formular perguntas ou expor os problemas que tem enfrentado.
Além da desatualização dos valores indenizatórios, a demora no pagamento chega a mais de um ano, quando o acordo com o Governo do Estado para a desapropriação estabelecia um prazo de 40 dias. Em muitos casos foi denunciado que não houve acordo, mas pressão para os moradores assinarem o contrato de desapropriação a valores subestimados. A promotora de Justiça Geovana Araújo reforçou que as negociações realizadas na Secretaria da Infraestrutura eram sob coação.
As obras do VLT estão paralisadas desde junho, mas já levaram muitos prejuízos para as comunidades e tiraram delas projetos sociais, de esporte e lazer, como campo de futebol e espaço de hidroginástica, agora desativados. Com a paralisação, muitos locais viraram pontos de consumo e tráfico de drogas e assaltos e permanecem cheio de entulhos e acumulando lixo, o que favorece à proliferação de doenças, como a dengue, e à presença de animais peçonhentos e roedores.
“A criminalidade aumentou e a população ficou a mercê. Projetos sociais não existem mais”, apontou Mikaelly Alves, hoje moradora de uma casa com rachaduras e infiltrações, que fica inundada quando chove e onde já apareceu até escorpião. O avô teve um princípio de infarto que ela atribui ao sofrimento que as obras trouxeram para a família da comunidade Trilha do Senhor.
As obras do Veículo Leve sobre Trilhos trouxe uma carga pesada para os moradores de 22 comunidades. “Descaso, abandono e sofrimento. Famílias destroçadas porque tiveram que ser separadas. Morreu gente por causa dessa obra”, aponta José Maria Queiroz, representante da comunidade Lauro Vieira Chaves. “O VLT foi mal projetado, mal elaborado, não foi trabalhado trecho a trecho e as comunidades não foram ouvidas”, questiona.
“Há situação em que o laudo já constatou que a casa vai cair, mas não voltaram mais lá”, alerta Maria da Graças, da comunidade do Mucuripe, cobrando respostas urgentes do Governo do Estado. “O governo desapropriou terrenos, mas as casas não foram construídas ainda. O governo está buscando empréstimo para construir o Acquário, mas o que está acontecendo com as comunidades é muito mais importante do que o Acquário", compara.
Sucessão de transtornos
Remoções, falta de pagamento de indenizações pelas desapropriações realizadas, defasagens no pagamento de aluguel social desde o início e se agravando com o passar dos meses... Em depoimentos e imagens, os representantes das comunidades denunciaram os impactos das obras. Os vídeos comprovam que o direito à moradia digna está sendo violado. Os transtornos não são poucos. Há quem relate até perda de oportunidade de emprego fora do Brasil pela impossibilidade de viajar enquanto o problema de moradia em Fortaleza não for resolvido. Muitos se queixam da falta de informações e esclarecimentos.
“Que hoje não seja fruto de um 1º de abril”, atentou Thiago de Souza, referindo-se ao Dia da Mentira e cobrando atendimento às reivindicações feitas, como a urbanização que ainda não chegou à comunidade Caminho das Flores, na Parangaba, onde vive.
Remoções sem preservar as origens
As obras do VLT removeram pessoas que moravam há décadas no mesmo local. “A remoção tem que ser para bairros próximos, de forma a preservar as suas origens”, aponta a promotora de Justiça Geovana Araújo, questionando por que muitos moradores foram removidos para o bairro José Walter, a cerca de 14 quilômetros de onde estavam.
O defensor público do Estado do Ceará, José Lino Fonteles, que acompanha a polêmica desde o começo, concorda que muitos moradores saíram de onde já tinham assegurados serviços de saúde, educação e lazer, próximos e gratuitos, como o hospital, a escola e a praia. “Foi uma dificuldade desde o início para garantir que as remoções fossem feitas para áreas próximas ao lugar de origem”.
Ao questionamento do Governo do Estado de que, antes os moradores não queriam indenização e, agora, “brigam” por ela, o defensor público é conclusivo. “É porque só sobrou isso”, disse, respondendo ao representante da Secretaria da Infraestrutura do Estado, André Pierre. “O governo tem a seu favor, além do peso político, a principal banca de advogados, que é a Procuradoria Geral do Estado”, acrescentou. José Lino Fonteles afirmou ainda que o atual governador do Estado, Camilo Santana, tem conhecimento de perto do problema porque na época era secretário das Cidades.
O procurador do Ministério Público Federal, Alessander Sales, ratifica os problemas apontados pelas comunidades, como avarias nas residências e acúmulo de lixo e entulho ao longo das obras. Ele reconhece que existe um passivo com indenizações fora da realidade. “Até as indenizações que foram acordadas precisam de correções”, acrescenta. E um passivo com alugueis sociais, necessitando correção também. “O Estado não pode deixar as pessoas em situação pior. O ideal é que melhorasse a vida das pessoas; se não, pelo menos, que deixe em situação equivalente; mas fez foi piorar”, assevera.
O representante do Ministério Público Federal compreende que, com a retomada dos trabalhos e os recursos do Plano de Aceleração do Crescimento, o Governo do Estado atenda ao o ato normativo do Ministério das Cidades, que estabelece condições para preservar os direitos das comunidades atingidas pelas obras do PAC. A Portaria nº 21, de 22 de janeiro de 2014, aprova o Manual de Instruções do Trabalho Social nos Programas e Ações do Ministério das Cidades.
Alessander Sales acompanha as obras do VLT antes mesmo de terem começado e já apresentou três ações na Justiça Federal questionando o empreendimento. Em uma delas, o procurador questionou que o Governo do Estado desejasse fazer as desapropriações ainda sem o Estudo de Impacto Ambiental que possibilitasse o licenciamento ambiental. O estudo foi providenciado, mas, segundo ele, “absolutamente incompleto, inapropriado, imprestável para qualquer tipo de licenciamento”. O Governo do Estado ainda fez complementações a pedido da Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace), “mas que não resolveram nada, sem medida compensatória alguma para os danos ambientais causados”.
Durante a audiência pública na Assembleia Legislativa, nessa quarta-feira, o procurador apresentou um outro questionamento: a desapropriação de uma área de preservação ambiental na Poligonal do Parque do Cocó para a construção de moradias. Alessander Sales reconhece o interesse social, mas entende que a solução não levou em conta a questão ambiental e defende que haveria outras alternativas fora de uma área de preservação.
Obras paralisadas e sem prazo para retomada
Das dez estações previstas, apenas uma ficou pronta, a que está localizada próxima ao Terminal Rodoviário Engenheiro João Tomé, na comunidade Aldaci Barbosa, no Bairro de Fátima. As obras do VLT estão 51% concluídas e seguem paralisada desde junho de 2014, quando o Governo cancelou o contrato com o consórcio CPE-VLT, alegando descumprimento de prazos. Os trabalhos tiveram início dois anos antes, em 2012, para que o VLT fosse entregue a tempo da Copa do Mundo de 2014.
“Passados nove meses de suspensão da obra, o interesse público, decerto, não foi atendido”, conclui a promotora de Justiça Geovana Araújo. “A paralisação se deu exatamente ao fim da Copa do Mundo. Então, cadê a preservação do interesse público? O que foi feito com o dinheiro publico?“, questiona a representante da Promotoria de Conflitos Fundiários da Procuradoria Geral de Justiça do Ceará.
Com a paralisação e sem perspectiva de retomada, a estudante Valeria Pinheiro, do Laboratório de Estudos da Habitação da Universidade Federal do Ceará e integrante da Frente de Luta por Moradia, propõe que o projeto seja rediscutido, ampliando o traçado para além da área onde estavam concentradas outras obras previstas em função do campeonato mundial de futebol e atendendo uma população maior. De acordo com o projeto, a estimativa é de que 90 mil passageiros por dia sejam atendidos pelo VLT, permitindo integração com terminais de ônibus e linhas de metrô.
Os moradores reivindicam o cumprimento do Decreto nº 31.285, de 23 de setembro de 2013, que declara de utilidade pública os imóveis localizados em terrenos nos bairros Cidade 2000, Vila União e São João do Tauape, para fins de desapropriação em função das obras do VLT, e questionam se o aluguel social também não pode ser reajustado por decreto.
O procurador da República, Alessander Sales, está analisando os motivos da rescisão contratual com o consórcio encarregado das obras. Ele questiona que, enquanto o Governo do Estado aponte que houve inoperância ou incompetência do contratado, o consócio apresente outra versão ao Ministério Público Federal, de que não continuou as obras porque não foram realizadas todas as desapropriações. Alessander Sales questiona ainda que o Estado estime um prejuízo pela paralisação da obra em torno de R$ 145 mil e que o gasto apenas com os 49% das obras ainda a serem concluídas possa superar o valor total previsto. “Pelos depoimentos que colhemos, o valor dos 49% remanescentes superaria o valor total da obra”.
O coordenador de transporte e obra da Secretaria da Infraestrutura do Estado, André Pierre, informou que já foram executados 100 milhões de reais nos 51% de obras concluídas. Ele atribuiu a um “contrato infeliz” a causa de tantos problemas listados pelos moradores durante a audiência pública. O VLT é uma obra de mobilidade urbana, com 12,7 quilômetros de extensão, financiada com recursos federais e estaduais, no valor global de R$ 265 milhões.
Ao afirmar que as empresas não têm demonstrado interesse em retomar as obras, o representante do Governo do Estado comunicou que já foram realizadas duas tentativas de licitação após a paralisação dos trabalhos e que a terceira tentativa será apresentada com a divisão das obras em três lotes, nos próximos dias 22, 23 e 24 de abril, para tornar o processo mais atrativo.
Os moradores exigem também que haja uma responsabilização das empresas pela paralisação dos trabalhos e um novo cronograma de obras. Segundo André Pierre, valores do antigo consórcio foram retidos para que sejam providenciados os devidos ajustes no reinício dos serviços. O representante da Seinfra informou que serão construídas 96 unidades habitacionais para receber os moradores removidos na Vila União, outras 96 na comunidade Aldaci Barbosa, além de 448 na comunidade Alto da Paz e 1.360 na Cidade 2000.
Falta de planejamento e diálogo com a população
A professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Ceará (UFC), Clarissa Sampaio, que tem acompanhado o projeto do VLT, atesta que a obra não foi planejada e descumpriu ritos de licenciamento ambiental e urbanístico. Ela também cobrou responsabilidade da Prefeitura de Fortaleza, que tem o papel, como ente municipal, de ordenamento territorial.
O defensor público da União, Alex Feitosa, lamentou a completa ausência de participação popular para discussão sobre o projeto do VLT. “Se tivesse havido o diálogo anterior à execução da obra, talvez nem estivéssemos aqui realizando esse tipo de discussão”, avaliou, considerando que houve omissão do Estado em não permitir ou estimular a participação da comunidade desde o início.
No entendimento do representante da Defensoria Pública da União, o Estado deve arcar com os ônus de todos os problemas encontrados em decorrência da obra. “O Estado foi omisso na regularização das moradias. O momento seria para resolver um problema social, mas o Estado quis apenas impor da forma como bem entendia a realização da obra. O pouco diálogo existente ainda foi feito por imposição das comunidades, não porque o Governo chamou as famílias”.
O deputado Renato Roseno acrescenta que a falta de planejamento foi uma das motivações para ele se juntar à luta pelo direito à moradia digna e contra a remoção das famílias pelas obras do VLT ainda quando nem havia assumido um mandato parlamentar. "Antes de assumir um mandato parlamentar, já nos juntávamos à luta das comunidades, pois muitas das obras justificadas para a copa eram bastante questionáveis, tanto no planejamento quanto no método de realização, e uma das críticas principais era à remoção das comunidades".
Encaminhamentos da audiência pública
O procurador da República no Ceará, Alessander Sales, ofereceu-se a compartilhar com a Assembleia Legislativa toda a documentação reunida e os depoimentos obtidos relativos às obras do VLT. Ele recomendou à Comissão de Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa que encaminhe à Comissão de Fiscalização e Controle o pedido de análise sobre as circunstâncias em que foi realizado o destrato com o consórcio responsável pelas obras do VLT e a contradição entre as versões do Governo do Estado e do contratado.
O representante do Ministério Público Federal também sugere que sejam avaliados o novo modelo de licitação e o preço final. Alessander Sales teme que o fracionamento do objeto contratado, por meio de três lotes para licitação, possa encarecer a obra. Ele recomenda ainda a correção imediata do aluguel social e dos valores de indenização utilizando índice oficial, com a retomada do pagamento das indenizações, independente de retomada das obras, contrariando a posição do coordenador de transporte e obra da Secretaria da Infraestrutura do Estado, André Pierre, que condicionou à realização da nova licitação.
O defensor público do Estado, José Lino Fonteles, considera que a atualização deve ser feita não apenas como uma revisão por correção monetária, mas porque entende que o valor padrão para uma casa simples dobrou. “Naquela oportunidade, era viável; hoje, quase que dobrou o valor do aluguel”.
A promotora de Justiça Geovana Araújo também quer saber como foi feito o destrato com o consórcio inicialmente responsável pelas obras e recomenda o cumprimento de decisão judicial que estabelece a necessidade de correção da defasagem no pagamento das indenizações e do aluguel social, de forma prévia e justa. “Os valores estão defasados porque foram definidos em 2012. É necessário atender à recomendação judicial inclusive”, reforça ela, que representa a Promotoria de Conflitos Fundiários da Procuradoria Geral de Justiça.
Sobre a falta de informações e esclarecimentos para os moradores, a representante da Secretaria das Cidades, a assistente social Patricia Rabelo, informou dois números de telefone (3101.4482 – 3101.4484) e explicou que a função da pasta é apenas complementar às atribuições da Secretaria da Infraestrutura e da Procuradoria Geral do Estado, restrita ao encaminhamento das famílias para inscrição no programa “Minha casa, minha vida”. Segundo a assistente social, até agora 150 famílias foram atendidas para ocupar os apartamentos que estão sendo construídos na Cidade Jardim, no bairro José Walter. “A Secretaria está aberta ao diálogo para buscar soluções justas para a comunidade”, concluiu.
O coordenador de transporte e obra da Secretaria da Infraestrutura do Estado, André Pierre, assumiu o compromisso de providenciar na próxima semana o levantamento das dificuldades para as comunidades advindas das demolições. “A Secretaria está à disposição para tirar dúvidas e dirimir problemas”, sinalizou. Ao fim da audiência, ele concordou que a construção dos conjuntos habitacionais não deve estar atrelada à retomada da obra e que a revisão dos valores para o pagamento de indenização e aluguel social seja encaminhada.
O representante do Governo do Estado explicou que a mudança de valor da obra se deve a incorporações de intervenções que não estavam previstas, como a urbanização da área em Parangaba, a implantação da Zona Especial de Interesse Social (Zeis) no Lagamar, melhorias em rua no Mucuripe, mais passarelas e uma central de regulação do VLT.
A deputada Rachel Marques (PT) considera o VLT uma obra de mobilidade importante e disse que há disposição do governador Camilo Santana para o diálogo e para resolver as questões. Segundo a parlamentar, 1.315 famílias tiveram as casas desapropriadas ao valor de R$ 76 milhões, e as moradias até agora entregues são dignas e bem melhores que as antigas.
O deputado Renato Roseno, autor do requerimento para a realização da audiência pública, destacou a luta e a organização das comunidades e que não há favor em apoiar o movimento pelo direito à moradia digna. "É nossa obrigação, e se houver conquista, a conquista é de vocês. Não é uma luta pequena e não se encerrará aqui. Sem luta, não terá direito. Que essa audiência tenha encaminhamentos concretos em favor das comunidades".